Claudia Wallin *
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Håkan Julholt parecia ser a encarnação do Messias que a social-democracia sueca esperava. Orador eloquente, ar vitorioso, Julholt assumiu a liderança do partido em março de 2011 com a missão de voltar a eletrizar o eleitorado e reconduzir os social-democratas ao poder, após duas vergonhosas derrotas eleitorais consecutivas.
Mas no meio do caminho, havia um apartamento funcional com uma namorada dentro. A revelação de que a companheira do líder morava no apartamento funcional, sem pagar sua devida parte do aluguel, interrompeu a ofegante escalada de Håkan nas pesquisas de opinião. Era outubro, e o caso faria Håkan entrar na cadência das folhas das árvores do outono sueco, em sua lenta e inevitável queda ao chão.
Na Suécia, o erário paga apartamentos funcionais exclusivamente para parlamentares: se a esposa de um deputado do interior decide viver no apartamento funcional da capital com o marido, cabe a ela arcar com a metade do valor do aluguel.
”É claro que não pagamos para ninguém morar de graça, a não ser os parlamentares com base eleitoral fora da capital”, diz Anna Aspegren, a chefe do setor no Parlamento sueco. A cônjuges de deputados, familiares, namorados e afins, é negado o benefício de morar ou até mesmo pernoitar em propriedade do Estado sem pagar.
O então líder do partido social-democrata sapateou nas regras, e iria enfrentar as consequências.
A denúncia partiu do jornal Aftonbladet: desde 2007, Håkan Julholt vinha ”recebendo dinheiro dos contribuintes para pagar o aluguel integral do apartamento funcional” que dividia com a companheira, Åsa Lindgren. Foi escândalo instantâneo. No total, Håkan tinha recebido 320,532 coroas suecas (cerca de 122 mil reais) durante quatro anos e meio. Pelas estritas regras do Parlamento sueco, Åsa deveria ter arcado com a metade deste valor – aproximadamente 160 mil coroas suecas (cerca de 61 mil reais).
O caso foi parar na polícia. ”Agência Nacional Anti-Corrupção Investiga Julholt”, noticiou a mídia em coro. Concluída a investigação preliminar, a Agência Anti-Corrupção encaminhou o caso ao Departamento Criminal da Polícia Nacional da Suécia (Riksenheten för Polismål), como mandam as normas que regem supostos crimes envolvendo parlamentares na Suécia.
Sem temer o inferno, Julholt jurou inocência e disse que não conhecia as regras que obrigam cônjuges e familiares a pagar pelo uso dos apartamentos funcionais. Mas tratou de devolver, sem esperneios nem demora, as 160 mil coroas suecas recebidas indevidamente. Håkan agiu rápido. Mas já era tarde.
”Eu errei por não ter me informado sobre as regras do uso de apartamentos funcionais. Peço desculpas por isso. Gostaria de enfatizar que não pedi dinheiro demais deliberadamente”, disse Julholt. Já segundo o setor de Administração do Parlamento, um assistente do líder social-democrata tinha sido notificado sobre a questão meses antes.
Os parlamentares suecos baseados fora da capital têm duas opções de moradia em Estocolmo: a primeira é viver em um dos apartamentos ou quitinetes funcionais. A segunda é alugar um apartamento por conta própria, e cobrar do Parlamento o ressarcimento correspondente ao valor do aluguel. Neste caso, o valor máximo que o Parlamento reembolsa aos deputados é de 8 mil coroas suecas mensais (o equivalente a cerca de três mil reais), quantia relativamente baixa para a escassa oferta imobiliária do centro da capital.
Håkan Julholt vem da cidade de Oskarshamn, 300 quilômetros ao sul de Estocolmo. Eleito deputado em 1994, ele ocupava sozinho um apartamento funcional no centro da capital. Em 2007, Håkan mudou-se para o apartamento da namorada Åsa, no subúrbio de Västertorp. A partir daí, registrou o imóvel dela como o seu novo apartamento funcional na capital, e passou a solicitar ressarcimento pelo valor do aluguel de 7.225 coroas suecas.
O aluguel do apartamento no subúrbio era mais barato que o do apartamento funcional que Håkan ocupava antes, sozinho, no centro da capital. O valor do aluguel no subúrbio também estava abaixo de oito mil coroas suecas, que é o limite máximo estabelecido pelo Parlamento para pagamento de auxílio-moradia a parlamentares.
Com esse e outros argumentos, Håkan percorreu incessantemente o país durante dois meses para pedir desculpas ao eleitorado, na chamada ”turnê do perdão” (förlåtelseturnén).
Mas o pecado de Håkan Julholt foi imperdoável: a companheira do líder estava morando no apartamento funcional às custas do dinheiro do contribuinte, sem pagar a parte do aluguel que cabia a ela, e não ao erário, custear. A esta altura, a imprensa revelara ainda que a namorada teria acompanhado Håkan em uma viagem oficial à Bielo-Rússia – e neste caso, segundo as regras parlamentares suecas, ele teria direito ao reembolso de apenas metade dos gastos com hotel.
O seguinte diálogo com Julholt foi publicado no jornal Dagens Nyheter na edição de 8 de outubro de 2011:
Repórter: ”Como você pôde crer que os contribuintes deveriam pagar o valor total do aluguel, se você divide o apartamento funcional com sua companheira?”
Håkan Julholt: ”Isso nunca passou pela minha cabeça. O que eu não sabia é que, quando um parlamentar divide o apartamento funcional com alguém, deve pedir reembolso apenas pela metade do valor do aluguel. Eu deveria conhecer esta regra. Não procurei me informar, mas deveria ter feito isso”.
Repórter: ”Você não acha lógico ter que dividir o valor do aluguel do apartamento funcional com sua companheira, uma vez que ela também mora lá?”
Håkan Julholt: ”Certamente”.
Repórter: ”Você chegou a refletir sobre essa lógica?”
”Não, eu não cheguei a fazer isso. O apartamento funcional que eu ocupava antes sozinho, no centro de Estocolmo, era mais caro. Por isso, não cheguei a refletir sobre essa questão”.
Repórter: ”Como considera que esse episódio vai afetar a confiança dos eleitores em você?”
Håkan Julholt: ”Isso prejudica a imagem dos políticos como um todo.”
O escândalo produziu editoriais inflamados. O diário liberal Gefle Dagblad observou que, como líder do Partido Social-Democrata, Håkan Julholt tinha uma renda mensal de 144 mil coroas suecas (cerca de 55 mil reais).
”Com um salário desses, nem o Joakim von Anka (o milionário e avarento Tio Patinhas das histórias em quadrinhos)” entraria numa fraude para ganhar algumas notas de mil”, disse o editorial.
Muitos deram crédito à alegação de Julholt de que ele não tinha conhecimento sobre as regras de ocupação do apartamento funcional. Mas se perguntaram se os eleitores perdoariam o líder, e se Julholt seria, afinal, um candidato adequado a ocupar o posto de primeiro-ministro da Suécia.
Em janeiro de 2012, já desgastado por intensas pressões para abandonar a liderança do partido, Håkan Julholt anunciou a renúncia. Durou dez meses no cargo.
”Os suecos detestam quando vêem alguém que ocupa posição de poder enchendo o próprio bolso”, comentou a cientista política Jenny Madestam, em declarações à agência de notícias sueca TT.
Parlamentares suecos vivem em apartamentos funcionais que têm em média 45,6 metros quadrados. Os menores têm 16,6 metros quadrados. Do total de 197 imóveis administrados pelo Parlamento sueco, apenas oito dispõem de espaço entre 70 e 90 metros quadrados, e somente 85 têm área superior a 45,6 metros quadrados.
O escândalo de Håkan fez o Parlamento introduzir novas regras: hoje, todo deputado é obrigado a declarar, em formulário oficial, se vive sozinho ou com quem divide o apartamento funcional. Antes, valia só a lei da confiança no respeito às normas.
* Trecho do livro “Um País Sem Excelências e Mordomias”