A Suécia e o fim do dinheiro de papel: é a nova era da Cashless Society

Por Claudia Wallin

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“Não aceitamos dinheiro”, diz o caixa da loja de acessórios de computador no centro da capital sueca, Estocolmo. Ele me olha com certo espanto, como se meu gesto de tirar dinheiro vivo da carteira já tivesse sido fossilizado em algum museu de cera como memória de um passado selvagem.
É o princípio da era da Cashless Society, a Sociedade Sem Dinheiro, e a Suécia lidera a tendência no planeta: quatro entre cada cinco transações de compra no país são feitas hoje eletronicamente, ou através de cartões.

“Voltar aos tempos do dinheiro de papel não é uma alternativa na Suécia. Fora de questão”, diz Bengt Nilervall, analista da Federação Sueca do Comércio (Svensk Handel).

Os sinais da morte anunciada do dinheiro estão por toda parte neste país, onde compra-se até chicletes com cartão. Turistas atônitos ouvem dos motoristas de ônibus de Estocolmo que a tarifa deve ser paga via SMS ou cartões pré-pagos, enquanto os demais passageiros sobem na condução empunhando seus celulares com a mensagem do pagamento feito. No Museu do ABBA, da icônica banda sueca, também não se recebe pagamento em dinheiro. Taxistas aceitam qualquer cartão.

Nas máquinas de bilhetes de estacionamento, que também aceitam cartão, foi colado um aviso para quem anda perdendo o bonde da história – “Você não precisa mais de mim”, diz a mensagem, seguida de instruções para baixar o aplicativo EasyPark e realizar os pagamentos via celular.

São, ironicamente, os criadores negando a criatura: as primeiras cédulas de papel da Europa foram introduzidas em 1661 pelo Stockholms Banco, o embrião do Banco Central da Suécia. Agora, os suecos tornam-se os primeiros a desprezar o dinheiro vivo.
“A Suécia está significativamente à frente do resto da Europa e também dos Estados Unidos, onde ainda se usa um grande volume de dinheiro de papel”, diz Nilervall, destacando os avanços dos vizinhos nórdicos, Noruega e Dinamarca, na mesma direção.

Cada vez mais bancos usam cada vez menos dinheiro, em uma sociedade que paga suas contas majoritariamente via internet, celular e cartão. Os principais bancos da Suécia vêm simplesmente parando de lidar com dinheiro em até 75% de suas agências, com a única exceção do Svenska Handelsbanken.

Ladrões de banco vão se tornando, assim, anacrônicos personagens da história. Os poucos assaltantes mal-informados protagonizam cenas de humor involuntário. Em uma manhã de 2013, um homem invadiu uma agência bancária em Östermalmstorg, no centro de Estocolmo, e ameaçou os funcionários com um objeto que parecia ser uma arma. Diante da clássica ordem “passe todo o dinheiro”, ouviu do caixa a realidade dos novos tempos: “este banco não trabalha com dinheiro”. Perplexo, o homem deixou o local de mãos vazias, e foi caçado em seguida pela polícia.

Em toda a Suécia, o número de roubos a agências bancárias vem atingindo o índice mais baixo dos últimos 30 anos, segundo a Associação dos Bancos sueca. Em 2014, de acordo com relatório publicado na página oficial na internet do Conselho Nacional Sueco para a Prevenção do Crime (Brottsförebyggande rådet – Brå), foram registrados no total 23 assaltos a banco no país.

Na previsão de Bengt Nilervall, dentro de cinco anos 95 por cento das transações financeiras da Suécia serão realizadas de forma eletrônica.

“E daqui a dez anos, o dinheiro de papel terá um uso mínimo”, vaticina o analista da Federação do Comércio.

Pergunto a Bengt quanto ele leva hoje em dinheiro na carteira.

“Zero coroas suecas”, ele responde. “Se você fizer a mesma pergunta aos meus colegas, vai ouvir a mesma resposta. Porque se você mora em Estocolmo, definitivamente não precisa de dinheiro de papel.”

Uma das poucas vezes em que que um sueco precisa tocar em dinheiro é quando dá um trocado para o filho ir comprar sorvete, emenda o especialista.

“Mas quando uma criança completa dez anos de idade aqui na Suécia, ela ganha uma conta bancária e um cartão”, acrescenta ele.

É verdade: assim vi o meu marido sueco fazer com nossas três crianças. Na idade do plástico, o que rege a Suécia são os cartões – a média é de 260 transações com cartão bancário por pessoa, a cada ano. E novas tecnologias e aplicativos de pagamento via celular vêm sendo desenvolvidos com rapidez colossal.

Entre as últimas novidades está o aplicativo Swish, que acabou criando um novo verbo na língua sueca: “swishar”, que significa transferir dinheiro via celular. Para “swishar” dinheiro para outro usuário, basta digitar no celular o número de telefone da pessoa ou empresa a quem deseja transferir uma quantia, seguido por um código de segurança. A transação se dá em tempo real: em questão de segundos, pisca no celular de quem recebeu o dinheiro a mensagem de que a quantia entrou em sua conta bancária.

O sistema Swish foi implementado nos seis maiores bancos da Suécia, como um método rápido e simples de transferência de dinheiro entre pessoas e empresas.
Nas ruas, feirantes e ambulantes também se adaptam à tendência cashless. Até mesmo os sem-teto que oferecem nas esquinas a revista cultural Situation, a equivalente sueca da britânica Big Issue, já estão equipados com leitores portáteis de cartões.

“Muitas pessoas diziam que não podiam comprar a revista porque não tinham dinheiro na carteira”, disse à Sveriges Radio (Rádio Suécia) a diretora da revista, Pia Stolt. “Tínhamos que fazer alguma coisa, e a solução foi procurar a empresa de pagamentos móveis iZettle a fim de poder vender a revista eletronicamente”.

O resultado é palpável:

“As vendas da Situation aumentaram em 59%”, diz Pia.

Nos grandes supermercados suecos, também já não é mais preciso passar pelo caixa tradicional. No meu mercado local, o Hemköp, os caixas de autoatendimento são tão populares que a direção retirou do local as atendentes que ajudavam os consumidores iniciantes a usar a nova técnica. Após posicionar a barra magnética de cada produto nas máquinas de leitura, paga-se a conta com qualquer tipo de cartão.

“É muito melhor não ter que enfrentar uma fila grande para comprar dois litros de leite”, diz o sueco Rickard Skröder.

A Suécia é uma sociedade reconhecidamente formada por early adaptors, com rápida adaptação a novas tecnologias em um dos países mais avançados do mundo em técnicas digitais.
“Os bancos e o comércio investiram maciçamente em sistemas de pagamentos eletrônicos na Suécia a partir da década de 90, e hoje em dia os consumidores estão acostumados a usá-los”, diz Niklas Arvidsson, professor de Dinâmica Industrial do Real Instituto de Tecnologia da Suécia (KTH).

Na Itália, por exemplo, 3/4 de todas as compras ainda são pagas em dinheiro.
“Isto é consequência do baixo índice de confiança nas autoridades e no sistema bancário”, observa o professor.

Arvidsson acredita que a Suécia pode se tornar uma sociedade totalmente sem dinheiro – mas não antes de 2030:

“As pessoas ainda têm uma relação familiar com a sensação de ter dinheiro vivo na mão, e uma pesquisa recente mostrou que dois terços dos entrevistados consideram a disponibilidade do dinheiro de papel como uma questão de direitos humanos”.

Para os bancos, as empresas de cartões e a indústria sueca, as vantagens de uma sociedade cashless são evidentes. Operar sem dinheiro traria mais segurança para funcionários e clientes, eles dizem. E também eliminaria os altos custos de gerenciamento e transporte de dinheiro, estimados recentemente em 8,7 bilhões de coroas suecas – o equivalente a 0.3% do PIB sueco.

Mas pouco tem sido debatido sobre os desafios que uma sociedade sem dinheiro pode trazer, segundo apontou o ex-comandante da polícia sueca Björn Eriksson em artigo publicado recentemente na imprensa sueca.

“Como ficam as pessoas desfavorecidas que vivem à margem do sistema bancário? O que acontece com a privacidade do indivíduo quando todas as suas transações financeiras podem ser rastreadas? E o que acontece quando as coisas não funcionam?”, pergunta-se Eriksson, também um ex-chefe da Interpol.

No verão passado, os organizadores do festival de música Bråvalla, que acontece todos os anos na cidade de Norrköping, anunciaram que o evento seria totalmente cashless. Mas o sistema de pagamentos não funcionou, lembra Eriksson. E o caos se instalou.

“O Estado precisa garantir o direito das pessoas de usarem o dinheiro de papel”, defende ele.

O debate engaja defensores e detratores da idéia nas redes sociais, com direito a doses de humor:

“Já vivo sem dinheiro há anos. Desde o dia em que me divorciei”, escreveu um internauta.

Mas o analista da Federação Sueca do Comércio não chega ao ponto de decretar a morte do dinheiro de papel.

“Se eu acredito que a Suécia não terá no futuro nenhum dinheiro em circulação? Bem, não. Mas com certeza o uso do dinheiro será drasticamente reduzido”, afirma Bengt Nilervall, que prefere destacar as vantagens de entrar na onda cashless:

“Não conheço as circunstâncias do Brasil, mas acredito que as novas tecnologias têm o potencial de beneficiar qualquer país. Na Suécia, a maioria dos políticos defende a expansão dos meios eletrônicos de pagamento, como forma de evitar a sonegação de impostos e combater o mercado negro”, ressalta ele.

Pelo menos a curto prazo, os dias de vida do dinheiro de papel na Suécia estão garantidos: em outubro deste ano, o país lança uma novíssima coleção de cédulas – que vai incluir a efígie da enigmática estrela sueca Greta Garbo na nota de cem, e uma inédita nota de 200 coroas suecas com a imagem do diretor Ingmar Bergman.

* Publicado originalmente na revista Panorama Abecs

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