Como são os apartamentos funcionais dos políticos na Suécia

Por Claudia Wallin
[show_fb_likes] Como todos sabiam, o fim do mundo estava próximo. Corriam rumores terríveis sobre a nefasta profecia do ano 2000, e o grande cataclisma que a tudo e a todos varreria com fúria bestial. Mas, certos de que não era a primeira vez que o mundo estava para acabar, os pragmáticos suecos levavam adiante seu plano para a primavera daquele ano: instalar nos recém-criados apartamentos funcionais os parlamentares que ainda viviam e dormiam em sofás-cama, nos próprios gabinetes. A mudança começara em 1989.
No dia mais temido, os lobos não engoliram o sol e a lua, o céu não derreteu, e quase todos os deputados com base fora da capital passaram a ter um apartamento funcional. Que é, no sentido prático do termo, o que o nome diz: funcional.
Se um sueco de virtudes negociáveis é assaltado pelo desejo súbito de trabalhar pelo povo, o apartamento funcional não será um dos estímulos a seduzi-lo, como serpente encantada, para a carreira política.
Parlamentares suecos vivem em apartamentos funcionais que têm em média 45,6 metros quadrados. Os menores têm 16,6 metros quadrados. Do total de 197 imóveis administrados pelo Parlamento sueco, apenas oito dispõem de espaço entre 70 e 90 metros quadrados, e somente 85 têm área superior a 45,6 metros quadrados.
Deputados suecos também vivem em quitinetes funcionais. Sim, há quitinetes funcionais na Suécia. Chamadas de ”quartos de pernoite” (”övernattningsrum”), elas têm em média 18 metros quadrados e são ocupadas geralmente – mas não exclusivamente – por deputados em início de carreira. São, no total, 57 quitinetes funcionais.
Comum a todos os imóveis destinados a parlamentares na Suécia, sejam eles apartamentos ou as inventivas quitinetes, é a ausência do que o senso comum chama de comodidades básicas: dentro dos imóveis não há máquina de lavar roupa, nem lavadora de pratos, nem TV a cabo paga com dinheiro público, nem cama de casal.
Nenhum ocupante de apartamento funcional na Suécia ganha do erário uma máquina de lavar para chamar de sua. As lavanderias são comunitárias, e os deputados precisam marcar hora na agenda para lavar a roupa suja. Na grande parte dos apartamentos, não há sequer quarto: um único cômodo funciona como sala e quarto de dormir.
Numa manhã do curto e inconfiável verão sueco, vou conhecer o apartamento funcional do então deputado social-democrata Luciano Astudillo, nascido no Chile e na época com seis anos de vida parlamentar como representante de Malmö (Sul da Suécia).
Desço pelo Katarinahissen, uma espécie de Elevador Lacerda sueco que liga o asfalto e o morro na ilha de Södermalm, centro de Estocolmo. O lugar provoca emoções ambíguas. Do alto da passarela que conduz ao elevador, abre-se uma das vistas mais fascinantes de Estocolmo, no ponto onde as águas do lago Mälaren se encontram com o Mar Báltco. Mas a alta cerca de aço que atrapalha a visão é resultado, assim me dizem, da atração que a passarela também exercia sobre suicidas em potencial. Menos sobressaltos se têm no Gondolen, o peculiar restaurante em forma de gôndola que fica pendurado sob a passarela, com visão de 360 graus para a cena imperdível.
Após poucos minutos de espera, o deputado Luciano Astudillo surge das roletas de saída da estação de metrô de Slussen, ao lado do Katarinahissen. Caminhamos juntos através da Götgatan, artéria que concentra bares e cafés moderninhos de Södermalm, até chegarmos à rua do apartamento funcional de Luciano.
Sigo o rito sueco de tirar os sapatos antes de entrar em qualquer casa, e olho à minha volta. Uma pequena sala, um pequeno banheiro, uma pequena cozinha com forno microondas e sem lavadora de pratos. São 33 metros quadrados. ”Onde é o quarto de dormir?”, pergunto.
”O quarto é aqui na sala mesmo. Na hora de dormir, abro o sofá-cama”, diz Luciano, que chegou à Suécia em 1975, aos três anos de idade e dois anos depois do golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende no Chile. Enquanto mostra o apartamento, Luciano conta que a filha pequena, nas visitas ocasionais a Estocolmo, divide com ele o sofá-cama.
”Estive várias vezes no Chile, e sei que a situação ali em relação aos parlamentares é totalmente diferente”, ele diz.
Descemos ao subsolo do prédio, onde fica a lavanderia coletiva. São apenas duas máquinas de lavar. Pregado na parede junto à porta, está o fichário onde os deputados reservam dia e horário para usar as máquinas. Tábuas de passar roupa estão dobradas em um dos cantos da lavanderia.
”Eu tenho a minha própria tábua”, fala Luciano. ”Prefiro passar minhas roupas dentro do apartamento.”
Também é o próprio Luciano que cozinha e cuida da limpeza da casa, nesta sua época de vida parlamentar. Faxina gratuita nos apartamentos funcionais, segundo o Parlamento sueco, só uma vez por ano, durante o recesso parlamentar de verão. Luciano sabe.
Começa em seguida o período do recesso e das faxinas, quando visito, na companhia da chefe do setor de imóveis parlamentares, as quitinetes funcionais. Na entrada do Parlamento sueco, Marie Stolpe me recebe com a expressão de quem não entende o por quê de tamanho interesse por coisa tão banal.
Ao meu lado, com sua altura vertiginosa e seu temível sotaque da região de Skåne (Sul da Suécia), o cinegrafista Casimir Reuterskiöld me acompanha, a fim de filmar o material que será enviado à equipe do Jornal da Band em São Paulo.
Tomamos a direção do Palácio Real e seguimos os três a pé pela Stallbron, a ponte que liga a ilha do Parlamento a Gamla Stan, a Cidade Antiga de Estocolmo. Na pequena praça de Mynttorget, entramos no anexo parlamentar que leva o nome de Ledamotshuset (”Casa dos Deputados”), e que também abriga gabinetes parlamentares. Passamos pelos procedimentos de segurança e tomamos o elevador para o sexto andar do prédio. Ali estão 13 das 52 quitinetes de deputados do prédio. As outras cinco ficam no complexo parlamentar conhecido como Cephalus, na Riddarhustorget, próximo dali.
Ao lado de cada porta no labirinto de corredores, uma placa identifica o deputado morador – Eva Olofsson, Tone Tingsgård, Christina Oskarsson, Allan Widman são alguns dos inquilinos do momento. À medida que caminhamos, as siglas partidárias se alternam nas placas. Nestes democráticos corredores, deputados progressistas e conservadores, ou ferrenhos inimigos de plenário, se transformam em vizinhos de porta.
Marie vira a chave em uma das portas, com a necessária autorização do deputado ausente em recesso. É um exíguo aposento de 18 metros quadrados.
”É espaço suficiente para um parlamentar viver na capital durante a semana”, diz Marie, enquanto abre o sofá que se transforma em cama durante a noite.
Talvez com pouco exagero, o tamanho da quitinete me faz lembrar as celas que visitei na moderníssima penitenciária de Sala, nos arredores de Estocolmo, onde os detentos – como na maioria das prisões suecas – também têm banheiro privativo.
”Podemos colocar camas extras com rodinhas em caso de necessidade, como a visita de um parente”, concede Marie.
Além do sofá-cama, uma mesa, um pequeno armário, uma minicopa com um fogão de uma boca, um frigobar e um banheiro são suficientes para preencher o espaço da quitinete parlamentar.
Aqui, até a cozinha é comunitária. Marie nos conduz à sala ampla da cozinha coletiva, que, além das modernas estações de reciclagem de lixo, exibe uma inesperada lavadora de pratos, item inexistente nos apartamentos funcionais.
”Mas os deputados devem lavar as panelas e manter a limpeza”, diz Marie.
O aviso pregado em um dos armários da cozinha é um chamado ao asseio parlamentar: ”Städa Upp!” (”Deixe tudo limpo!”)
Perto dali, vejo uma cozinha adaptada para parlamentares portadores de deficiência, que também dispõem de quartos e banheiros especialmente equipados.
Deixamos o prédio da Ledamotshuset e seguimos com Marie Stolpner em direção a Munkbron, endereço de um dos sete edifícios de apartamentos funcionais do Parlamento. Às margens do lago Mälaren, a Munkbron é uma rua ainda nos limites da Cidade Antiga, na ilha de Stadsholmen. Dali se avista a ilha de Riddarholmen e as torres da Riddarholmskyrkan, a igreja onde estão sepultados antigos monarcas da Suécia. À esquerda, vê-se mais uma ilha, a de Södermalm.
A fachada do edifício em tom de amarelo na Munkbron é simples como a do prédio de Luciano Astudillo, em Södermalm. Como em praticamente todos os edifícios de Estocolmo, não há porteiros ou zeladores, e nem mesmo interfone na entrada. Apenas o costumeiro painel eletrônico, onde se digita o código que abre a porta principal.
No andar térreo, o apartamento funcional tem pouco mais de 16 metros quadrados. Na minúscula copa, há um fogão de uma boca, um forno microondas e um frigobar. Uma cama de solteiro, uma mesa e um pequeno armário completam o ambiente, que segundo Marie é ocupado por uma veterana deputada de vários mandatos.
No segundo andar, o iluminado apartamento de 40 metros quadrados é um salto de duas estrelas à frente, em comparação ao vizinho do térreo. Mas à exceção da cozinha, onde mais de uma pessoa pode mexer uma panela no fogão, e dos metros a mais na dimensão da sala, que também é o único cômodo do apartamento, o padrão basicamente funcional dos imóveis parlamentares da Suécia também se repete aqui.
A visita é encerrada no subsolo do edifício, onde vemos nova lavanderia comunitária e o indefectível fichário na parede para a reserva de horário, à espera dos deputados.
Há, sem metáforas, deputados que lavam roupa suja no Parlamento: também ali há uma lavanderia comunitária. É o caso da deputada Rossana Dinamarca, do Partido da Esquerda (Vänsterpartiet, ex-comunista):
”Como costumo voltar muito tarde para o meu apartamento funcional, lavo minhas roupas durante o dia, na lavanderia do Parlamento. É simples, basta colocar na máquina e voltar uma hora depois para recolher as roupas”, diz Rossana.
E na creche do Parlamento, os deputados podem deixar os filhos com idades entre um ano e treze anos.
”Mas os deputados precisam pagar pelo almoço das crianças, que custa 20 coroas (cerca de três dólares)”, diz Monika Karlsson, funcionária da creche. Em dias de sessão noturna, a creche fica aberta até à meia-noite – ou mais.
Os apartamentos e quitinetes funcionais estão à disposição somente de deputados como Rossana Dinamarca, que têm base eleitoral a pelo menos 50 quilômetros de distância da capital. Deputados de Estocolmo não têm direito a imóvel funcional, nem auxílio-moradia. E o Presidente do Parlamento sueco não tem direito a residência oficial.
”O Presidente do Riksdag não tem nenhum privilégio especial em relação a moradia. Seus direitos são os mesmos dos demais parlamentares”, diz Maria Skuldt, da assessoria de imprensa do Parlamento.
Fica a critério de cada partido decidir como acomodar seus parlamentares – quem vai para os apartamentos, quem fica com as quitinetes. O Parlamento cobre os custos de manutenção dos imóveis. Mas não todas as contas.
”Os parlamentares têm verba mensal de 100 coroas suecas (cerca de 15 dólares) para gastos com eletricidade, e nada mais. Eles podem solicitar serviços de limpeza no apartamento se quiserem, mas para isto têm que pagar cerca de 300 coroas suecas (aproximadamente 46 dólares) por faxina”, diz a chefe do setor de Serviços Parlamentares (Ledamotsservice), Anna Aspegren.
Mais: o erário público paga apartamentos funcionais exclusivamente para parlamentares. A cônjuges de deputados, familiares, namorados e afins, é negado o benefício de morar ou até mesmo pernoitar em propriedade do Estado sem pagar. Quando o familiar de um parlamentar passa uma temporada no imóvel funcional, o deputado tem prazo de um mês para ressarcir o erário pelos dias de pernoite.
E nesta sociedade onde mais de 75 por cento das mulheres estão na força de trabalho, se a esposa de um deputado do interior decide viver no apartamento funcional da capital com o marido, cabe a ela arcar com a metade do valor do aluguel.
”É claro que não pagamos para ninguém morar de graça, a não ser os parlamentares com base eleitoral fora da capital”, diz Anna Aspegren.
Os parlamentares têm duas opções de moradia na capital sueca: a primeira é viver em um dos apartamentos ou quitinetes funcionais. A segunda é alugar um apartamento por conta própria, e cobrar do Parlamento o ressarcimento correspondente ao valor do aluguel. Neste caso, o valor máximo que o Parlamento reembolsa aos deputados é de 8 mil coroas suecas mensais (o equivalente a cerca de 1,2 mil dólares), quantia relativamente baixa para a escassa oferta imobiliária do centro da capital.
”Mas os parlamentares que vivem com o cônjuge em um apartamento alugado só podem pedir reembolso da metade do valor do aluguel, e têm que pagar do próprio bolso pela manutenção do imóvel”, explica Anna Aspegren.
É o que faz a líder do Partido de Centro (Centerpartiet), Annie Lööf, que divide o apartamento funcional com o marido.
”O marido de Annie tem que pagar sua parte do aluguel, como qualquer outro cidadão”, diz Aspegren.
Trecho do livro “Um País Sem Excelências e Mordomias”

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