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Debate já dura mais de uma década: a presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, publicou no mês passado portaria que obriga tribunais de todo o Brasil a informar dados sobre a folha de pagamento de magistrados, a fim de apurar eventuais descumprimentos do teto salarial. Já se viu isso antes.
Desde 2006, e sem resultado, o CNJ anuncia medidas para controlar a remuneração dos juízes – conforme observa Janaína Penalva, Professora adjunta da Faculdade de Direito da UnB, em texto publicado no site Jota.
A medida da ministra Cármen Lúcia foi anunciada após novas revelações da imprensa sobre contracheques milionários de juízes – desta vez no TJ de Mato Grosso, onde um deles chegou a receber mais de meio milhão de reais em julho deste ano.
Mas trata-se de mais um ato meramente simbólico do CNJ, avalia a professora Janaína Penalva: “Em uma pergunta: o que a presidência do CNJ vai fazer quando tomar formalmente ciência de que as administrações dos tribunais violam a Constituição e que o CNJ falha no dever de controle?”
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Do Jota:
CNJ debate há 10 anos salários acima do teto
A Portaria 63/2017 da presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministra Carmen Lúcia, determinando que os tribunais remetam suas folhas de pagamentos para o CNJ, não passa de um déjà-vu.
O ano é 2006, o CNJ dá um passo em direção ao controle da remuneração dos juízes em nome da observância do teto constitucional. A ministra Ellen Gracie, então à frente do Conselho, realiza levantamento sobre a remuneração dos juízes e servidores ativos, inativos e pensionistas.
O estudo revelou irregularidades em 19 tribunais de justiça estaduais e no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), totalizando 2.978 casos de magistrados e servidores em situação de irregularidade.[1] Com os dados em punho, a então presidente abre a sessão plenária do órgão, expõe os valores e inicia o debate. Do plenário, saem constatações:
“A lenda urbana rezava que o excesso era duas ou três vezes acima do teto. Foi bom fazermos essa análise para verificar que não era bem assim”, afirmou Ellen Gracie. “A caixa preta não está mais no Judiciário”, completou o conselheiro Oscar Argollo.
“Pela primeira vez na história republicana um Poder realizou um trabalho de absoluta transparência, mostrando quanto ganham os juízes e servidores. Que isso sirva de exemplo para os outros poderes”, disse o conselheiro Alexandre de Moraes.[2]
O que motivou esse levantamento foram as Resoluções 13 e 14, ambas de 21 de março de 2006, sobre a aplicação do teto remuneratório e o subsídio mensal dos juízes e servidores do Poder Judiciário. Os atos normativos tinham sido recebidos com espanto pelos tribunais, em especial, os estaduais.
O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo à época, Celso Luiz Limongi, criticou duramente o CNJ em seu discurso na abertura do ano Judiciário em 2007. Disse que não havia marajás no órgão e chamou de levianos aqueles que “tentam desqualificar as justiças estaduais.” O presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o terceiro maior Tribunal do país, chegou mesmo a se manifestar pela desobediência aos atos do Conselho, encabeçando uma greve de “advertência” no tribunal.[3]
O ministro Nelson Jobim, então presidente do CNJ, destacou no momento de aprovação desses atos: “O principal objetivo das resoluções é fazer com que possa haver, dentro de um determinado período de tempo, total transparência na remuneração dos magistrados”.
Não poderia ser mais falha a avaliação do ministro. Não só porque permanecem as discrepâncias salariais entre os juízes, mas principalmente porque no quesito transparência, Têmis tem os dois pés fincados na sombra.
Em uma nova investida sobre o tema, em dezembro de 2009, o CNJ editou a Resolução 102 que determinou aos tribunais a publicação de informações sobre a gestão orçamentária e financeira, quadro de pessoal e estrutura de remuneração de magistrados e servidores. Pela resolução, os tribunais passariam a ter obrigação de tornar públicos todos os seus gastos, inclusive despesas com passagens, diárias, contratação de serviços e obras.
Em 2015, após atraso de mais de três anos para regulamentar a Lei de Acesso à Informação, quanto à publicação da remuneração e proventos percebidos pelos membros e servidores do Judiciário, o CNJ retrocedeu e restringiu o acesso à informação, de forma a depender de solicitação, com identificação do requerente.
Passados quase doze anos da edição das primeiras resoluções, a notícia de recebimento de verbas por juiz que ultrapassam o valor de meio milhão de reais, em apenas um mês, deu ensejo a novo ensaio de transparência, um passo da sombra à penumbra.
A ministra Cármen Lúcia publicou a já mencionada Portaria 63/2017 que encaminha ações de transparência ativa que, novamente, determina aos tribunais a publicação periódica das remunerações dos juízes. A decisão pode parecer importante, mas não passa de um ato reativo e insuficiente, que escamoteia a indisposição dos órgãos do poder judiciário em discutir seriamente o tema, afinal, a atual presidência do CNJ inaugurou seu mandato com um forte discurso sobre acesso à justiça e igualdade. Mas não há acesso à justiça se os julgadores formam uma casta de privilegiados.
Além disso, o ato é insuficiente, porque o que se esperava do CNJ, como política judiciária de efetivação do dever constitucional de controle da atividade administrativa dos tribunais, seria uma proposta de alteração da Resolução 215/2015, com fixação de prazo para que os tribunais publicassem em formato aberto, periódico e individualizado as remunerações de seus membros, exatamente como fazem os demais poderes da República.
**O ato é meramente simbólico, porque não terá os efeitos que enuncia. Em uma pergunta: o que a presidência do CNJ vai fazer quando tomar formalmente ciência de que as administrações dos tribunais violam a Constituição e que o CNJ falha no dever de controle? Vai pautar os procedimentos instaurados para análise do cumprimento da Resolução 14/2006 e que ainda estão pendentes de resolução? Como, por exemplo, o procedimento de controle administrativo 0000 100-91.2014.2.00.0000, em que se discute a legalidade de valores pagos a título de “vantagens eventuais” no maior tribunal do país, o Tribunal de Justiça de São Paulo?
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a Presidente vai incluir em pauta a AO 7.173 para referendo da liminar concedida pelo ministro Fux que garante o pagamento do auxílio-moradia a todos os juízes brasileiros?
A portaria menciona envio das informações à Corregedoria Nacional de Justiça para adoção de providências, “quando for o caso de descumprimento das normas constitucionais e legais sobre pagamentos realizados sem o fundamento jurídico devido”. Não há casos de pagamento sem “fundamento jurídico”, no sentido estreito da expressão e o CNJ sabe disso. Todos os tribunais têm normas internas que desenham benefícios e verbas de diversas ordens que são, ao final, as responsáveis pela superação do teto. E todas essas normatizações se fundamentam, de forma inclusive criativa, na Lei Orgânica da Magistratura. A Loman está no centro do debate e sobre ela nada se disse. **
O que, de fato, pode esclarecer a “lenda urbana” é regulamentar o pagamento dos passivos e definir o alcance do art. 37, § 11, da Constituição Federal, que retira as parcelas de caráter indenizatório dos limites do teto remuneratório.
Em relação aos passivos, é preciso definir como deve ocorrer o pagamento, em qual prazo, como e se incide a prescrição quinquenal, etc. Quanto às verbas de caráter indenizatório, quais são elas? Auxílio-voto, auxílio-terno, auxílio-moradia, etc, quais têm amparo constitucional?
Essas definições, nesse regime constitucional, só quem pode fazer é o STF e o CNJ que deveriam, juntos, inaugurar um debate público, não-corporativista, que encaminhasse ao Congresso uma nova lei orgânica da magistratura, compatível com a democracia e com a Constituição, que retirasse da mídia as notícias diárias e embaraçosas sobre os exorbitantes valores pagos aos magistrados que, em definitivo, não são “lenda urbana”.
Mas esperar transparência e diálogo do STF e do CNJ é como esperar por um trem na estação errada. Há, todavia, alguém mais que possa dar passos largos em direção a um judiciário aberto?
Poderíamos, com bastante otimismo, esperar algo das associações de juízes? Seriam elas capazes de, em uma lição de pós-corporativismo, utilizar meios digitais e tecnológicos para reunir a cidadania em um debate aberto e isento sobre um novo estatuto que seja bom para os juízes e bom para os jurisdicionados, um estatuto que não deixasse dúvida sobre o caráter público da jurisdição?
É possível esperar que juízes brasileiros formem novas associações ou redirecionem sua filiação para as mais democráticas para recuperar a condição ética necessária ao exercício de suas funções? Conseguiriam eles se reunir em corporações mais modernas, informais, pautadas em compromissos mais amplos e horizontais, capazes de inaugurar, orientar e fomentar o debate sobre um novo marco legal da magistratura?
A presidente do STF não vai pautar o tema nem no plenário desse tribunal, nem no CNJ. Tampouco podemos esperar qualquer ação das associações de juízes, essas organizações sequer vislumbram horizonte pós-corporativista. Ao contrário.
A estratégia do STF, CNJ e associações é de manutenção de um estatuto da magistratura de baixa aderência ao regime constitucional de 1988, que proporciona fumaça jurídica favorável ao descumprimento do teto remuneratório. Encaminhar o projeto de uma nova lei orgânica que simplesmente legalizasse os “penduricalhos” parece não ser a melhor estratégia, afinal, já é notório que o anteprojeto deixado pelo Ministro Lewandowski é uma carta de privilégios.
Janaína Penalva – Professora adjunta da Faculdade de Direito da UnB
Leia o texto completo no site Jota
8 de Setembro de 2017