Citada como exemplo por Bolsonaro, estratégia da Suécia contra coronavírus não serve para o Brasil, diz responsável por plano

Claudia Wallin

De Estocolmo para a BBC News Brasil

Face pública da controversa estratégia sueca de combate à pandemia do novo coronavírus, o epidemiologista-chefe da Suécia, Anders Tegnell, afirmou que não adotaria a mesma abordagem no Brasil caso estivesse no comando da gestão da crise brasileira.

“Não. É preciso sempre adotar uma estratégia que leve em consideração as circunstâncias locais, como por exemplo em termos de população e de saúde pública”, disse Tegnell em entrevista exclusiva à BBC News Brasil na sede da Agência Nacional de Saúde Pública da Suécia (Folkhälsomyndigheten).

A Suécia foi citada recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro como exemplo, por não impor isolamento duro contra o novo coronavírus e manter aberta boa parte do comércio – bandeiras defendidas pelo mandatário brasileiro para não prejudicar a economia durante a crise do Covid-19.

Com calma perpetuamente inabalável diante dos questionamentos diários, e mesmo face aos ataques mais furiosos de seus críticos, o epidemiologista-chefe mantém a convicção de que a mais moderada abordagem sueca para o enfrentamento da pandemia tem sido a melhor resposta para lidar com a crise na Suécia. Mas Anders Tegnell alerta que é perigoso assumir que a estratégia sueca poderia ser um exemplo para outros países – inclusive o Brasil.

“Creio que é sempre perigoso adotar a estratégia de qualquer outro país e implementá-la no seu, sem refletir sobre como ela funcionaria em seu próprio país. É preciso ter cuidado ao adotar modelos de outros países sem levar em consideração a sua situação local específica, inclusive em termos históricos. Na minha opinião, é muito importante pensar a respeito disso”, destacou Tegnell.

Caso contrário, diz ele, isso representaria um risco:

“Da mesma maneira, seria muito arriscado adotar estratégias de outros países aqui na Suécia”, acrescentou o epidemiologista, de 64 anos.

Brasil X Suécia

São vários os contrastes entre Brasil e Suécia, que tem uma população de apenas 10,2 milhões de habitantes. Só o Estado de São Paulo tem 45 milhões de habitantes. Um dos principais fatores de risco para a disseminação do vírus é a densidade populacional – que na Suécia, ao contrário de várias regiões do Brasil, é extremamente baixa.

Outro diferencial é a dinâmica da demografia brasileira, marcada por uma grande coabitação entre gerações, com crianças, pais e idosos dividindo o mesmo espaço. Já a Suécia tem o maior número de lares habitados por uma só pessoa em toda a Europa.

A própria experiência da capital sueca – o epicentro da pandemia no país – demonstra que fatores como maior densidade populacional e coabitação entre gerações são elementos de perigo na atual crise, aponta Tegnell:

“Na Suécia, podemos constatar que Estocolmo, onde a densidade populacional é mais alta, tem sido muito mais afetada pela pandemia em comparação com outras regiões do país em que a densidade populacional é mais baixa. Também podemos ver que nas áreas onde temos muitos grupos de diferentes gerações convivendo no mesmo espaço, o número de casos é maior”, destaca Tegnell. Na capital sueca, um dos grupos mais atingidos é a comunidade de imigrantes da Somália.

Segundo Anders Tegnell, estratégia deve levar em consideração circunstâncias locais.
Foto: Claudia Wallin

 

Sem Cloroquina

O uso da cloriquina e seu derivado, hidroxicloroquina – incluídos recentemente pelo Ministério da Saúde brasileiro no protocolo de tratamento de pacientes de Covid-19 – foi banido na Suécia já em abril, quando especialistas suecos alertaram para o risco de arritmias e morte associado ao uso do remédio.

“Não há evidências sobre os benefícios do medicamento”, ressalta Tegnell.

Esta semana, a Suécia ultrapassou a barreira de 4 mil mortos por Covid-19

– e a taxa de mortalidade sueca é exponencialmente mais alta em relação aos vizinhos nórdicos que implementaram o lockdown, embora menor que a de outros países que também adotaram o isolamento duro.

A Suécia também não está “bem com a sua economia”, como chegou a afirmar o presidente Bolsonaro. Sobre as previsões do próprio Banco Central sueco de que o desempenho da economia sueca não apresenta projeções melhores em relação a países que adotaram medidas mais estritas de lockdown, Tegnell rejeita as críticas de que a estratégia sueca prioriza a saúde da economia, em detrimento da saúde da população. E afirma que não há, portanto, nenhum plano para mudar a atual estratégia de combate ao Covid-19.

Bandeira da Suécia
Suécia foi elogiada por Jair Bolsonaro, mas estratégia não é consenso entre especialistas e poderia representar riscos se replicada para realidade brasileira

Estratégia X Mortes

A dissonante estratégia sueca de combate ao covid-19 tem sido tentar reduzir a disseminação do vírus através de uma abordagem mais flexível e sustentável, que possa ser mantida a longo prazo – ao contrário de medidas mais rígidas, como o lockdown. O objetivo é manter a taxa de transmissão do vírus o mais baixa possível, a fim de não sobrecarregar o sistema de saúde e evitar um colapso do sistema, e ao mesmo tempo manter um certo grau de funcionamento da sociedade.

O colapso que muitos temiam não se produziu até agora. Mas o preço em mortes tem sido dolorosamente alto, em especial entre os idosos acima de 70 anos – que representam 90% do número total de mortos. De acordo com as estatísticas oficiais, a Suécia contabiliza 33.843 casos confirmados do novo coronavírus, e 4.029 mortes. Um total de 343 pessoas estão internadas em unidades de terapia intensiva.

A Suécia está ainda entre os países com as mais elevadas taxas de mortalidade per capita do mundo. O lentavamento mais recente da universidade americana Johns Hopkins aponta que a Suécia ocupa o sexto lugar no ranking mundial, com uma taxa de mortalidade de 39.57 por cem mil habitantes – quase quatro vezes superior à registrada pelo Brasil (11.21 por cem mil habitantes).

Em sua defesa, o principal arquiteto da estratégia sueca indica que a taxa de mortalidade acumulada da Suécia é inferior à de alguns países que implementaram o lockdown, como Bélgica, Espanha, Grã-Bretanha, Itália e França. Ele acrescenta que a curva de contágio e mortes na Suécia tem apresentado um leve declínio nas últimas semanas, e sustenta a estimativa de que cerca de 20% da população de Estocolmo já desenvolveu anticorpos contra a doença.

Responsabilidade individual

Um dos critérios centrais para a escolha da estratégia sueca diante da pandemia do Covid-19 foi traçar um plano capaz de ser levado adiante por muitos meses, já que será preciso conviver com o vírus por muito tempo. Os demais países nórdicos tomaram um rumo oposto – a Dinamarca, por exemplo, implementou o lockdown antes mesmo de registrar a primeira morte.

Já a estratégia sueca é baseada na responsabilidade individual, e não em medidas mandatórias. E isso funciona em alto grau em uma sociedade como a sueca, onde existe um alto nível de confiança nas autoridades, e onde a população via de regra segue as orientações das autoridades.

“Há uma série de aspectos positivos em relação a um isolamento mais suave. Um deles é que é mais fácil fazer com que as pessoas sigam as recomendações de forma voluntária, do que forçá-las a fazer alguma coisa. Por outro lado, para implementar uma estratégia como essa é preciso que haja um grande nível de confiança entre as agências públicas, o governo e a população. Eu diria que este nível de confiança é um pré-requisito para que se possa adotar uma estratégia mais suave. Se você tentar fazer isso em um país onde não existe este elemento de confiança, poderá ter muitos problemas”, destacou Tegnell, ao falar sobre se a estratégia sueca poderia ser um exemplo para países como o Brasil.

Outro aspecto diferencial na Suécia é que todas as agências públicas trabalham, por lei, sem ingerência política – o governo define diretrizes e orçamentos, mas todas as decisões tomadas são essencialmente técnicas. Anders Tegnell e sua equipe estão portanto no comando central e diário da crise, em contraste com países em que líderes políticos aparecem também como líderes da resposta à pandemia.

Epidemiologistas da Agência de Saúde Pública sueca chegaram a comentar que, em conversas com colegas nórdicos, ouviram deles que determinadas medidas mais severas foram tomadas por decisão política, e não com base em recomendações das autoridades de saúde.

Anders Tegnell faz questão ainda de destacar que a abordagem sueca não é uma estratégia de imunidade de rebanho – embora a imunidade possa ser um benefício real da resposta sueca à crise.

‘Imunidade existe’

Ainda não é possível afirmar se há uma imunidade eficaz após a infecção pelo Covid-19, dizem cientistas internacionais. Apesar disso, Anders Tegnell avalia que o lento declínio dos casos observado nas últimas semanas em Estocolmo se deve sim ao nível de imunidade já atingido.

“Vemos claramente um declínio da curva, e não mudamos nenhuma medida da nossa estratégia nas últimas semanas. Ou seja, a estratégia permaneceu a mesma, e os números caíram. Portanto, a única explicação para esse lento declínio é que parte da população atingiu a imunidade”, disse o epidemiologista.

Tegnell destaca ainda que entre os vizinhos nórdicos, que adotaram o lockdown, a estimativa é de que apenas um ou dois por cento da população está imune, e que nesse sentido a Suécia estaria aparentemente em uma posição mais favorável.

“A questão da imunidade é complexa, porque normalmente mede-se o nível de imunidade através do número de anticorpos produzidos, e há indícios de que esse número é baixo no caso do Covid-19. Portanto, ainda não se sabe qual será a resposta imune a esse novo vírus. Por outro lado, nossos biólogos e pesquisadores na Suécia estão bastante seguros de que essa imunidade existe”, diz o epidemiologista.

Ele ressalta que em todos os casos de pacientes contaminados na Suécia, não há nenhum que tenha apresentado a doença duas vezes.

“Temos um rígido e eficiente sistema de controle aqui, e portanto não há hipótese de que tal fato poderia nos passar desapercebido. Também não há registro oficial em nenhum outro país de qualquer caso comprovado de uma pessoa que tenha voltado a contrair o vírus. Houve apenas rumores nesse sentido, que em seguida foram descartados”, acrescenta Tegnell.

Estudo divulgado na quarta-feira passada, a partir de dados relativos a abril,  concluiu que apenas 7,3% da população de Estocolmo desenvolveu anticorpos contra o novo coronavírus – um índice significativamente mais baixo do que o cálculo anterior das autoridades de saúde de que 25% dos habitantes da capital estariam ou teriam sido infectados no início de maio.

Desenvolvida com base em 1,104 testes conduzidos no país, a pesquisa de anticorpos foi conduzida pela própria Agência Nacional de Saúde Pública sueca, em conjunto com o Real Instituto de Tecnologia sueco (KTH).

Conforme era esperado, Estocolmo apresentou a taxa mais alta de resultados positivos na análise de anticorpos. Nas regiões de Skåne (sul da Suécia) e Västra Götland (no oeste do país, onde se situa Gotemburgo, a segunda maior cidade sueca), foram registrados índices de 4,2% e 3,7%, respectivamente.

Tegnell admite que esperava-se uma taxa de imunidade um pouco melhor do que a indicada pelos números de abril, mas diz que os resultados estão alinhados com os métodos de cálculo que estimam que cerca de um terço da população de Estocolmo já teria adquirido imunidade ao vírus em algum grau. Para ele, a pesquisa de anticorpos relativa ao mês passado é parte de um quebra-cabeça:

“Em linhas gerais, o quebra-cabeça mostra que os progósticos que fizemos estão bastante corretos. Talvez estejamos a um nível de imunidade um pouco abaixo do que previmos, mas não muito mais baixo. Nossa avaliação é que temos agora uma taxa de imunidade de cerca de 20% em Estocolmo”, afirma Tegnell.

Segundo o imunologista-chefe, é preciso considerar o lapso existente entre o momento em que uma pessoa é infectada e aquele em que ela começa a produzir anticorpos.

“É preciso lembrar que a medição se dá durante diferentes fases dessa linha do tempo, e que o estudo mediu dados referentes às três semanas anteriores ao atual momento”, pondera ele.

Estocolmo, na SuéciaGETTY IMAGES
Capital da Suécia, Estocolmo é epicentro da pandemia no país

Nem todos concordam com os prognósticos de Tegnell. Na visão de Gunilla Karlsson Hedestam, professora de Imunologia do Instituto Karolinska da Suécia, os resultados da pesquisa de anticorpos realizada em abril indicam que as previsões anteriores podem ter sido otimistas demais. Ela faz menção a uma investigação conduzida pela Universidade Karolinska, que mostrou que 10% dos profissionais de saúde desenvolveram anticorpos.

“Creio que a taxa relativa a Estocolmo esteja mais ou menos nessa faixa, entre sete e 10%”, avaliou a especialista em declarações à agência sueca TT, para acrescentar que novos estudos serão necessários a fim de fortalecer as estatísticas.

Especialista brasileiro

Já para o brasileiro Antonio Ponce de Leon, professor titular do Departamento de Epidemiologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador visitante regular do Instituto Karolinska da Suécia, é válida a estimativa de Tegnell com relação à taxa de imunidade em Estocolmo.

“Se no início de abril a estimativa de população imune foi de 7,3%, é possível que em meados de maio esta estimativa tenha triplicado ou até quadruplicado, dado que a circulacão de pessoas nas ruas de Estocolmo, e na Suécia em geral, não foi proibida como ocorreu em outros países. A forma mais eficaz para estimar este valor é por meio da realizacão de inquéritos sorológicos representativos da população. Porém, os exames devem possuir sensibilidade e especificidade altas, de forma que poucos falsos negativos e falsos positivos ocorram, além do número de exames ter que ser suficientemente grande para resultar em estimativas precisas”, diz o brasileiro.

Casal de idosos em Estocolmo
Houve um debate considerável sobre o tamanho da epidemia em Estocolmo

Seja como for, Tegnell ressalta que é um mito a ideia de que a imunidade de rebanho pode fazer o novo coronvírus desaparecer.

“Não há razão alguma para acreditar que podemos atingir um nível de imunidade que possa interromper a disseminação. O que a imunidade pode fazer é ajudar a manter a taxa de transmissão do vírus baixa, de forma a manter a capacidade de funcionamento do sistema de saúde a um nível satisfatório e para que possamos eventualmente relaxar determinadas restrições. Mas para tentar paralisar a contaminação, será preciso combinar a imunidade com uma vacina efetiva contra o covid-19”, observou o epidemiologista.

A Organização Mundial de Saúde também já advertiu contra apostas na imunidade de rebanho, diante de diversos estudos globais que detectaram taxas de anticorpos na população na faixa de apenas 1% a 10%. Para que se possa alcançar a imunidade de rebanho, cientistas avaliam que entre 60% e 80% de uma população deve estar imune à doença.

Recorde de mortes é questionado

Anders Tegnell também questiona os métodos do estudo divulgado na semana passada passada pelo projeto Our World in Data, vinculado à Universidade de Oxford, segundo o qual a Suécia registrou o maior número de mortes per capita do mundo na semana entre os dias 12 e 19 de maio. De acordo com o levantamento, a Suécia teve 6,08 mortes por um milhão de habitantes naquela semana, seguida pela Grã-Bretanha (5,57 mortes por milhão) e Estados Unidos (4,11 por milhão). O Brasil ficou em quarto lugar no mesmo período, com 3,74 mortes por milhão.

No entender de Tegnell, analisar uma semana aleatória não dá uma resposta conclusiva sobre qual país está obtendo mais ou menos êxito com diferentes medidas.

“Os países se encontram em fases diferentes da curva da epidemia. A Suécia está em uma etapa adiantada. Outros países atravessam fases ainda mais adiantadas, e portanto registram taxas de mortalidade significativamente mais reduzidas, enquanto determinados países apresentam uma curva ascendente. Portanto, penso que é preciso ter muito cuidado ao comparar números de diferentes países no período de uma única semana em particular. Comparações mais embasadas só poderão ser feitas muito mais adiante no curso da evolução da pandemia”, disse Anders Tegnell em entrevista ao jornal Dagens Nyheter.

O professor brasileiro Antonio Ponce de Leon concorda com a avaliação de Tegnell. Segundo ele, na semana específica analisada pelo Our World in Data, o país que liderava o ranking era a Suécia, apesar da curva de óbitos no país escandinavo ter utrapassado o pico e estar em pleno declínio.

“Coincidentemente, na mesma semana as taxas per capita de outros países europeus, cujas taxas acumuladas de óbitos são bem mais altas do que a da Suécia, estavam baixas porque estes países já estão na reta final da chamada primeira onda da pandemia. Estima-se que a Suécia chegará nessa fase em breve. Na verdade, a forma correta seria publicar o ranking desde o início da pandemia, ou ainda, considerar a fase de cada país no percurso para que fossem feitas comparacões. Sem estes cuidados, o teor dessa estatística pode ser deturpado ou mal interpretado”, avalia o especialista brasileiro.

Especialistas suecos argumentam ainda que alguns países contabilizam apenas as mortes ocorridas em hospitais, ao passo que a Suécia notifica também os óbitos ocorridos em casas de repouso.

Bandeira sueca pintada no asfaltoGETTY IMAGES
Maior falha da estratégia sueca até agora, conforme reconhecem as próprias autoridades de saúde, foi evitar o trágico número de mortes nos asilos de idosos

Crise nos Asilos

A maior falha da estratégia sueca até agora, conforme reconhecem as próprias autoridades de saúde, foi evitar o trágico número de mortes nos asilos de idosos – que corresponde a quase 50% do número total de mortos.

“O alto número de mortes me preocupa, e tem sido uma experiência terrível para nós. A principal causa disso está no elevado número de vítimas em asilos de idosos. Cerca de 70 mil pessoas vivem nesses asilos, a maioria delas muito idosas e frágeis, e infelizmente tivemos um alto índice de contaminação nas casas de repouso”, diz Anders Tegnell.

Pelas investigações conduzidas até agora, uma das razões se deve ao fato de que muitas casas de repouso operam com trabalhadores temporários, que trabalham por hora e que em muitos casos têm capacitação insuficiente. Vários asilos passaram também a ser operados pela iniciativa privada, e há críticas de que muitos imigrantes foram empregados no setor sem treinamento apropriado.

O fato é que as deficiências no setor não são exatamente uma novidade – mas a crise em curso nos asilos tem obrigado as autoridades a alçar a questão da melhoria do atendimento a idosos para o topo da escala de prioridades.

A fim de combater as deficiências, o governo sueco anunciou há poucos dias um pacote de 2,2 bilhões de coroas suecas para permitir o treinamento e capacitação de profissionais que trabalham com idosos. Cuidadores passarão a ter, por exemplo, a oportunidade de fazerem cursos de enfermagem e ao mesmo tempo continuarem a receber seus salários.

“O alto número de mortes nos asilos teve um forte impacto na nossa compreensão sobre a forma como funcionam os asilos, e sobre como precisamos apoiar o setor a fim de limitar e evitar o contágio nesses locais. Este é um setor que deve ser fortalecido, o que não significa que nossa estratégia como um todo deva ser alterada”, disse Tegnell durante sessão de avaliação da crise.

Há também sérias denúncias de que idosos não têm recebido tratamento médico adequado nos asilos, onde não há acesso a tratamento com oxigênio. Segundo algumas dessas denúncias, pacientes mais idosos infectados com o Covid-19 estariam recebendo apenas morfina diante de sintomas mais graves.

As consultas médicas têm sido feitas em grande parte através de contato telefônico entre os médicos e os profissionais que trabalham nos asilos, o que estaria resultando em falhas no tratamento e consequentemente em mortes. Diante das denúncias, as autoridades divulgaram esta semana diretrizes mais rígidas sobre o direito dos idosos a atendimento médico adequado, e lamentaram o que classificaram como casos isolados de mau funcionamento do sistema.

Casos relatados pela imprensa sueca chamaram a atenção de lideranças políticas, que prometem levar a questão a debate no Parlamento sueco esta semana.

Máscara, injeção, luva e bandeira da SuéciaSegundo Anders Tegnell, há muito poucas evidências científicas de que crianças menores sejam vetores de transmissão do novo coronavírus para adultos

Crianças menores não seriam vetores?

Manter as creches e escolas fundamentais abertas continua a ser uma decisão estratégica, a fim de permitir que pais possam trabalhar no sistema de saúde e em outros serviços essenciais.

E segundo Anders Tegnell, há muito poucas evidências científicas de que crianças menores sejam vetores de transmissão do novo coronavírus para adultos.

“Durante os últimos três meses em que creches e escolas de ensino fundamental têm permanecido abertas na Suécia, não detectamos sinais de que essa hipótese tenha se comprovado. A Islândia também tem uma experiência semelhante. O que observamos na Suécia foi a transmissão entre professores, que foram trabalhar com sintomas e infectaram outros professores. A preocupação de que as escolas podem ser focos de transmissão advém do fato de que as crianças menores são de fato vetores de transmissão de gripe. Mas a gripe é um outro tipo de doença. Em relação ao Covid-19, ainda não há evidências”, disse Tegnell recentemente durante webnário com correspondentes estrangeiros.

Já a decisão de fechar as instituições secundárias de ensino e universidades, segundo ele, foi tomada com o objetivo de evitar uma maior disseminação geográfica do vírus – uma vez que muitos estudantes precisam percorrer grandes distâncias de casa para a faculdade, ou mesmo para as escolas. Além disso, o fato de que escolas e universidades já operavam com tecnologias que permitem o ensino à distância levou ao raciocínio de que a qualidade de ensino não seria especialmente afetada.

“Quase todas as decisões que vêm sendo tomadas o mundo não têm base científica, porque ainda não há muitos estudos sobre o novo coronavírus. Portanto, não há até o momento evidências cientificamente embasadas de que adotar lockdowns, fechar fronteiras e paralisar escolas fará uma grande diferença a longo prazo”, acrescentou Anders Tegnell.

Crianças brincam em Estocolmo
Escolas da Suécia permaneceram abertas enquanto os países vizinhos a fecham por semanas

Sem Máscaras 

Outra peculiaridade sueca na pandemia do Covid-19 crise é que praticamente ninguém usa máscara nas ruas – até porque seu uso não é especialmente recomendado pelas autoridades de saúde. Por duas razões, diz Tegnell:

“Em primeiro lugar, os sinais da eficácia do uso da máscara não são particularmente fortes. Todos com quem tenho conversado a respeito fazem alusão a um pequeno estudo feito em Hong Kong, com outros tipos de vírus. Mas não se sabe ao certo qual é o grau de eficácia. Em segundo lugar, minha principal preocupação é de que o uso da máscara pode dar uma falsa sensação de segurança, e fazer com que as pessoas se descuidem de medidas fundamentais como manter o distanciamento social. Além disso, as pessoas acabam levando mais as mãos à boca, a fim de ajeitar a máscara no rosto”, argumenta o epidemiologista.

A recomendação das autoridades de saúde suecas é: pratique o distanciamento social, não saia de casa se apresentar qualquer sintoma, e trabalhe de casa se possível. Ao mesmo tempo, o governo sueco advertiu desde o início da crise que medidas mais drásticas poderiam ser tomadas, e também se preparou para o pior cenário, por exemplo triplicando a capacidade hospitalar.

Os hospitais operam atualmente com entre 11 e 67% dos leitos desocupados, dependendo da região.

Mas ainda resta saber se a estratégia menos draconiana adotada pela Suécia vai se mostrar correta em algum grau, a longo prazo. A Suécia ainda enfrenta um perigo real, e o sistema de saúde opera sob pressão. No total, mais de 44 mil cirurgias já foram canceladas no país, por conta da pandemia.

E à medida em que os termômetros começarem a registrar temperaturas mais altas – maio tem sido um mês mais frio do que o habitual -, manter as regras de distanciamento social pode ser um desafio para uma população prestes a emergir de mais um longo e gelado inverno.

Pessoas em um café em EstocolmoGETTY IMAGES
Maioria dos suecos está fazendo distanciamento social voluntário, mas clima ensolarado trouxe pessoas de volta às ruas

Culto a Tegnell

Apesar de não estar livre de críticas, Anders Tegnell conta com o apoio maciço da população sueca. Pesquisa do instituto Ipsos divulgada no último dia 2 pelo jornal Dagens Nyheter aponta que  69% dos suecos apóiam a estratégia do epidemiologista. O tradicionalmente alto nível de confiança da população nas autoridades também se reflete na aprovação ao governo durante a pandemia, que de acordo com estatísticas do instituto Novus registrou índice de 63% no final de abril.

E mais: entre os apoiadores mais ferrenhos, iniciou-se no país um verdadeiro culto a Anders Tegnell. Já se vendem camisetas, bolsas, canecas e até roupas de bebê com a imagem do epidemiologista, que ganhou contornos de ícone. Em Estocolmo, um sueco de 32 anos chegou a tatuar o rosto de Tegnell no braço esquerdo.

Meet the Swede who tattooed a state epidemiologist's face on his arm
Gustav Agerblad tatuou a imagem do epidemiologista Anders Tegnell no braço

“Tegnell parece ser uma pessoa competente e humilde, e eu me sinto calmo quando o ouço falar na TV. Gosto de tatuar coisas que têm um significado para mim e minha vida, e por isso quis gravar a face da crise sueca no meu braço”, disse Gustav Agerblad na TV sueca.

No Instagram, o rapper sueco Shazaam lançou no Spotify um hit inspirado no autor da estratégia sueca de combate ao covid-19. No vídeo, o rapper aparece de máscara e entoa frases como “que nem Anders Tegnell, não dou a mínima para o que os outros acreditam e acredito em mim mesmo”.

No Youtube, uma música em versão metal repete “All makt åt Tegnell, vår statsepidemiolog (“Todo poder a Tegnell, nosso epidemiologista do Estado”).

“As pessoas acham que a abordagem sueca é ‘punk’, e Anders Tegnell é a cara dessa estratégia. É a primeira vez que um nerd é idolatrado”, disse o tatuador Zashay Tastas, que perpetuou a imagem do epidemiologista no braço de Agerblad.

No Facebook, dois grupos de apoio ao epidemiologista (”Vi stöttar Anders Tegnell & co (FoHM)” e “Anders Tegnell Fan Club”) somam mais de 120 mil seguidores – e chegam a incluir vários comentários com referências a Tegnell como símbolo sexual.

“Anders Tegnell simbolisa o bom senso, e sabe o que faz. Conhecimento é sexy”, diz Jonas Arvidsson, fundador do fã clube de Tegnell no Facebook.

A ex-ministra da Saúde Maria Larsson chegou a sugerir num programa de TV que Tegnell deveria ser eleito o Sueco do Ano.

Tegnell diz que tem ‘dificuldade de se sentir lisonjeado’ com o culto à sua personalidade, que lhe parece ‘um tanto estranho’:

“O aspecto positivo é que isso demonstra a alta confiança depositada na Fokhälsomyndigheten (a Autoridade Nacional de Saúde Pública da Suécia). Isto é importante para que nossa estratégia possa funcionar da maneira como tem funcionado”, disse Tegnell à agência de notícias sueca TT.

Mas a Suécia não é um reino unido em torno de Anders Tegnell. A tradicional cultura sueca de consenso foi rompida por setores da academia desde os primeiros momentos da pandemia, com diversos cientistas se posicionando em aberto confronto às teorias mais flexíveis do epidemiologista-chefe e exigindo a adoção do mais traumático remédio do lockdown. Um deles chegou a afirmar que Tegnell joga roleta russa com a população sueca.

Nas mídias sociais também é alto o nível de fricção, com uma série de manifestações contrárias ao epidemiologista elevado por muitos ao status de guru da pandemia.

Os mais críticos fazem questão de apontar que Anders Tegnell já errou antes em seus prognósticos: no início de março, a avaliação dele era de que a epidemia do coronavírus ficaria restrita à China. O próprio Tegnell admitiu a falha na previsão.

Economia abalada

A economia sueca também está sendo fortemente afetada pela crise do novo coronavírus. A previsão da União Européia é de que o PIB sueco deve cair 6,1% este ano, em linha com as perdas de países como o Finlândia (6,3%), Dinamarca (5,9%) e Alemanha (6,5%) – embora melhor em comparação com os índices da Grã-Bretanha (8,3%), Itália (9,5%), Espanha (9,4%) e França (8,25), que assim como os demais implementaram o lockdown.

Mas o prognóstico do Banco Central sueco é mais sombrio, e aponta pra uma contração no PIB entre 7 e 10%. Na União Européia como um todo, as projeções indicam uma queda média do PIB de 7,4%.

A prefeita de Estocolmo, Anna König Jerlmyr, anunciou este mês que a capital está em recessão, e a previsão é de que o índice de desemprego deve chegar a 13,5% no próximo ano. Na Suécia como um todo, o desemprego subiu de 7,2% em março  para 8,2% em abril, e a previsão é de que deve chegar a 10% até o fim do ano.

É preciso lembrar que a Suécia é uma economia aberta – a soma das exportações e importações respondem por 89% do PIB. Ou seja, a Suécia é extremamente dependente do comércio com outros países, e nenhum país vai estar imune à crise provocada pela pandemia do Covid-19.

A fim de tentar reduzir os efeitos da crise, o governo sueco disponibilizou até agora um pacote total de 190 bilhões de coroas suecas (cerca de 111 bilhões de reais) para auxílio a empresas e à manutenção de empregos. Desde a primeira hora da pandemia, o governo anunciou subsídios de até 90% do salário dos trabalhadores afastados temporariamente.

O robusto sistema sueco de proteção social também garante o pagamento de generosos salários-desemprego, além de apoio adicional para os mais vulneráveis na forma de benefícios como subsídios para pagamento de aluguel de moradia. O Banco Central sueco, por sua vez, disponibilizou um total de 500 bilhões de coroas suecas, a fim de fornecer linhas de crédito a empresas nos próximos 24 meses. E os impostos das empresas só vão ser cobrados em 2021.

‘Vida não segue normal’, diz premier

O primeiro-ministro sueco, Stefan Löfven, repetiu mais uma vez que é equivocada a impressão de que a resposta da Suécia à pandemia do covid-19 tem sido excessivamente liberal.

“A vida não segue de forma normal na Suécia”, destacou ele em entrevista a correspondentes estrangeiros.

Escolas secundárias, universidades, museus e centros esportivos permanecem fechados. Visitas a asilos de idosos e reuniões de mais de 50 pessoas também continuam proibidas. Bares e restaurantes estão abertos, embora com regras de distanciamento e movimento reduzido. Cinco restaurantes que desrespeitaram as regras foram fechados pelas autoridades. Grande parte das pessoas passou a trabalhar remotamente, seguindo as recomendações do governo. O movimento nas ruas e nos transportes públicos de Estocolmo caiu visivelmente, apesar de lojas e outros estabelecimentos comerciais continuarem abertos.

O governo também estabeleceu limites para deslocamentos entre as regiões do país, e prolongou em um mês (de 15 de junho para 15 de julho) a recomendação para que os suecos não viajem ao exterior.

Mas para alguns países, turistas da Suécia – que tem atraído a atenção mundial por sua estratégia divergente – já são persona non grata: Chipre e os vizinhos Finlândia, Dinamarca e Noruega, que começam a abrir o turismo para algumas nacionalidades, excluíram os suecos da lista até o momento.

Vizinhos nórdicos

O número de mortes na Suécia é significativamente mais alto do que nos demais países nórdicos, que adotaram o lockdown. O levantamento da universidade Johns Hopkins, conforme observa o professor Antonio Ponce de Leon, mostra que a taxa de mortalidade per capita na Suécia (39.57 por cem mil habitantes) é quase nove vezes maior do que a da Noruega (4.42 por cem mil), mais de sete vezes maior do que na Finlândia (5.58 por cem mil), mais de quatro vezes maior do que na Dinamarca (9.71 por cem mil), e quase quatorze vezes superior à da Islândia (2.83 por cem mil), que registrou até agora dez mortes.

Na semana passada, o principal noticiário da TV sueca apresentou o dado alarmante de que a Suécia registrou o maior número de mortes em um mês dos últimos quase 30 anos – foram 10.458 mortos em abril, que até agora foi o ponto mais alto da crise. Por outro lado, a notícia chegou em meio aos sinais de uma ligeira queda nas taxas de morte e contágio nas últimas semanas.

Também ainda não se sabe qual será o resultado quando os vizinhos nórdicos e os demais países saírem do lockdown – o que já está acontecendo, gradualmente.  Anders Tegnell e outros especialistas suecos dizem que é cedo demais pra comparar o número de mortes, e que isso só vai poder ser feito daqui a pelo menos um ano. E na avaliação desses especialistas, a longo prazo o número de mortes nos vizinhos nórdicos pode ser, eventualmente, semelhante ao da Suécia.

Segundo essa teoria, ao contrário dos vizinhos, a Suécia deve enfrentar o impacto do surto mais cedo e ao longo de um período mais curto, com a maioria das mortes ocorrendo dentro de semanas, e não de meses. A se confirmar a expectativa de que a Suécia venha a atingir a imunidade mais rapidamente, a tese é de que o país teria menos surtos novos do vírus – fala-se em uma segunda onda já no próximo outono europeu – em relação aos vizinhos nórdicos.

Mas como diz o próprio Anders Tegnell, ainda é cedo para avaliar qualquer estratégia.

27 de Maio de 2020

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