Por Sérgio Reis
Precisamos de uma redefinição do conceito de corrupção. E a complexidade do fenômeno em um país profundamente desigual e multifacetado como o Brasil fornece insumos fundamentais para essa construção, a qual constitui pré-requisito para a formulação de políticas públicas capazes de compreender o problema com a dimensão aqui defendida como necessária. Por evidente, a provocação a ser feita no âmbito deste ensaio quer abrir portas para uma revisão ampla da questão, sem lhe apresentar uma compreensão acabada. Queremos abrir um flanco interpretativo, o qual já começa a ser desenvolvido na literatura internacional.
A hipótese que apresento é a de que a corrupção é um instrumento de realização da injustiça, sendo ultrapassada e limitada a ideia de que ela seja mera produção de vantagem pecuniária para si ou para outrem a partir de mecanismos “ilegais”. O “ganho” que a corrupção traz não precisa ser nem apenas pecuniário, nem ocorrer a partir de artimanhas ilegais. Ele pode prosperar, por um lado, a partir de absoluta aderência às leis (manipuladas a bel prazer por quem tem maior capacidade de lobby); por outro, sem que haja um centavo envolvido: basta que o ato produza desigualdade e/ou injustiça a partir de uma intervenção objetiva voltada a esse fim.
As políticas governamentais que produzem privilégios aos já privilegiados e atos de empresas e cidadãos com o mesmo fim precisam ser enquadrados como práticas corruptas: não só diante do definido acima, mas por “criarem o caldo” para a corrupção largamente conhecida das propinas. O problema é que, dadas as definições vigentes sobre a questão, tais situações tendem a sequer serem vistas como causas para que ela exista nem, muito menos, como uma forma de manifestação desse problema.
Ao ocorrerem sistematicamente, elas legitimam o desenvolvimento de um desejo social de desigualdade – um motor poderoso, cuja ignição depende de diversas ferramentas: a corrupção poderá ser nada mais do que um atalho eficaz. Esse desejo de desigualdade pode estar ancorado em concepções morais privatistas de “certo” e “errado” – aquelas que me permitem não reconhecer o outro como igual por diferenças de ideologia, opinião, raça, gênero ou religião – e que me dão autorização para agir objetivamente em sua busca, até o ponto de esse devir se naturalizar como um “direito”.
Quando, então, policiais desarmam índios que reivindicam a posse de uma terra na véspera de uma chacina comandada por latifundiários, estamos diante não só de homicídios qualificados, mas sim de atos de corrupção, mesmo que os referidos agentes não tenham auferido qualquer valor monetário a partir de sua intervenção e de sua subsequente leniência. O que definiria a ação como corrupta não é o dinheiro envolvido produzindo uma vantagem ilegal, mas sim o uso de um diferencial de poder para o aprofundamento de uma situação de desigualdade, e a decorrente inação em meio a uma prática flagrante de injustiça. Independentemente das motivações morais em jogo, a questão é que a atuação deles produziu um novo delta de desigualdade e redundou em justiçamento. Se houve dinheiro envolvido, a corrupção se torna qualificada, mas não é isso, em si, que a constitui.
Nesta hipótese, portanto, a corrupção vigora na vigência de um tecido social esgarçado, intrinsecamente marcado por um contexto no qual cidadãos nem se veem como iguais, nem de fato desfrutam de uma experiência comum – o diferencial de poder, finanças e valores inviabiliza um espaço público compartilhado. Nesse contexto, o privatismo, o endereçamento dos dilemas públicos a partir de valores moralizantes, típicos da esfera privada, se torna o padrão – e a injustiça, rotina. Corrupção e República são contradições irresolvíveis.
Contudo, há formas de ataque a esse mal que parecem estar alicerçadas no falso trade off entre fazê-lo ou defender a República e a legalidade. Alguns dos principais atores responsáveis pela tarefa, como membros da Operação Lava Jato, defendem a adoção de medidas excepcionais por verem a “impunidade” como causa da corrupção. Demanda-se, então, por limitações de direitos, pela ampliação dos tipos penais e de sua duração, pela autonomia dos órgãos de defesa do Estado. Na medida em que a corrupção é sistêmica, para esse modelo autoritário “dar certo” seria preciso, para além de certo desapreço pela democracia, que tivéssemos “principais com princípios”, capazes de aplicar essas leis mais duras com isenção e equilíbrio, alcançando a todos. Se já é filosoficamente discutível que estes atores existam em contextos autoritários, o ponto é que, logicamente, se a corrupção é generalizada, é inviável considerar que um segmento específico, descolado desse tecido social, venha a ser, em si, “republicano”.
Na prática, o que temos é a condenação sistemática de uns e a preservação de outros (por afinidade, ideologia, etc), produzindo intergeracionalmente a “meia-justiça” como a forma de resolução dos déficits de integridade. A Lava Jato, pelo visto, não é exceção a essa regra. Na medida em que as expectativas sociais sobre o “público” e a justiça no Brasil são muito baixas, a aceitação social dessa estratégia é ampla: o apoio, em parte, parece advir da lógica do “pelo menos”, isto é, “pelo menos estamos agora pegando alguns dos poderosos de sempre”. Contudo, “meia-justiça” é injustiça em dobro, pois confere legitimidade e convicção aos protegidos para perpetuarem e ampliarem suas práticas, aí sim sob o manto de uma legítima impunidade – a meia-justiça elimina a concorrência e oligopoliza os mercados da corrupção e eleitoral. No tecido social, longe de constranger os sujeitos a refrearem suas práticas corruptas, essa lógica normaliza a injustiça em nível ainda mais alto. E ela é gêmea a fenômenos como a concessão de penduricalhos aos “homens da lei”, a “isonomia às avessas” que equaliza privilégios a membros de mesmos estamentos – justamente aqueles que dizem o Direito e defendem o patrimônio público.
O reenquadramento aqui proposto não está voltado, de forma alguma, a criar novas figuras penais. Isso significaria entrar em contradição com o espírito da crítica que buscamos fazer. Precisamos, na verdade, de um ataque indireto e sistêmico voltado à estrutura política e social do Brasil. A igualdade e a justiça social devem ser compromissos primeiros da vida pública – rejeitando-se o “moralismo” como estratégia de promoção da integridade. Reconfiguremos, enfim, os meios e fins que conformam a gestão e as políticas públicas, os modos como os espaços públicos são construídos e como a cidadania pode co-produzi-los.
Sérgio Reis é Mestre em Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas, Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e integrante do serviço público federal brasileiro desde 2012
20 de Junho de 2017