Por Sérgio Reis
Enquanto milhões de brasileiros sofrem com o desemprego, a redução de salários e com o risco cada vez mais concreto de perderem direitos previdenciários e trabalhistas essenciais – sob o argumento de que as mudanças são pré-requisito para a recuperação econômica – há setores os quais não só não têm sofrido os impactos da crise, mas também, ao que parece, estão até mesmo ampliando seus privilégios. É o caso, por exemplo, das carreiras de Auditor e Analista Tributário da Receita Federal, bem como da carreira de Auditor-Fiscal do Trabalho.
Na véspera do apagar das luzes de 2016, o Governo Federal editou a Medida Provisória 765, a qual continha uma série de reajustes salariais para várias carreiras de Estado que haviam se recusado a aderir ao acordo geral que o governo havia estabelecido com outros servidores. As regras constitucionais estabelecem que uma Medida Provisória (MP) precisa ser aprovada pelo Congresso (e, depois, sancionada pelo Presidente da República) para que vire lei, em um processo com prazo determinado. Caso esse prazo seja ultrapassado, a MP “caduca” – ela vale, com força de lei, enquanto está sendo discutida na Câmara e no Senado, mas se expirar sem ser apreciada, deixa de vigorar. No caso, a MP 765 precisaria ser votada pelas duas casas até 1º de junho. Com a paralisia do Legislativo, até ontem a medida sequer tinha sido totalmente votada pelos Deputados.
Contudo, após um espetacular esforço de articulação sindical, conseguiu-se no dia 31 de Maio, à noite, a aprovação da MP no Plenário da Câmara e, apenas algumas horas depois, o “de acordo” do Plenário do Senado – após concordância das lideranças partidárias em acatá-la, mesmo sem discussão alguma. O Presidente do Senado, Eunício Oliveira, “lamentou o prazo curto” para o Senado apreciar a proposta, mas a submeteu ao referendo dos colegas, mesmo com a presença nela de matérias “estranhas ao seu propósito”, nas palavras do líder do governo, Romero Jucá – leia-se aí propostas inconstitucionais. Como “compromisso institucional”, prometeu-se que Temer vetaria essas questões, o que tranquilizou os Senadores – que se concentraram, então, na aprovação, “a toque de caixa” do que era efetivamente importante e consensual: reajustes salariais para algumas das mais bem remuneradas carreiras de Estado do Poder Executivo Federal.
No caso dos funcionários da Receita, a MP foi particularmente generosa. Não apenas concedeu os 21,3% de aumento salarial dado a outras carreiras, mas criou uma nova – e perigosa – figura: o “bônus por produtividade e eficiência”.
O bônus será dado aos Auditores e Analistas Tributários conforme aumentem a arrecadação pública, inclusive mediante a cobrança por multas e infrações a cidadãos e empresas. O argumento dado em favor da medida é o de que o bônus estimulará o aumento da produtividade dos servidores, de forma a ampliar as receitas públicas. O mecanismo não poderia ser mais óbvio: quanto mais multas, maior é o adicional percebido pelos servidores em seus contracheques ao final do mês. O risco moral diante de uma medida como essa, igualmente, claro: a famosa “indústria das multas”.
A conquista dos servidores da Receita foi possível após uma sequência de “operações-padrão”, medida caracterizada pela redução do ritmo e da jornada de trabalho em retaliação às propostas de reajuste feitas pelo governo, ainda durante a gestão de Dilma Rousseff. Responsáveis pela gestão da arrecadação federal, Auditores e Analistas Tributários puderam constranger o governo conforme a crise econômica se intensificava, o que resultou na aprovação do famigerado bônus a partir de um acordo entre o Ministério do Planejamento e a Associação Sindical dos fiscais, feito ainda antes do Impeachment daquele governo. Um Projeto de Lei foi, então, elaborado para viabilizá-lo. Contudo, os servidores estavam com pressa: diante da demora do Congresso em aprovar o normativo, Temer optou por criar uma Medida Provisória, de forma a dar vigência imediata ao pleito dos servidores. E não foi só isso: enquanto a própria Secretaria da Receita Federal não elaborasse o indicador a partir do qual o bônus seria calculado, os Auditores receberiam, de pronto, uma parcela de R$ 7.500,00 e depois, mensalmente, mais R$ 3.000,00.
O Fundo a partir do qual extrairão os recursos para o pagamento dessas benesses – sobre as quais não incidirão tributações – foi criado, na década de 1970, para modernizar e recuperar instalações e estruturas da Receita Federal pelo país, bem como para capacitar os próprios servidores. Agora, de forma quase integral, será empregado para ampliar os já generosos salários desses profissionais: logo ao ser aprovado em concurso, um Auditor recebe um vencimento inicial superior a R$ 20.000,00.
Considerando-se que o saldo do Fundo, nos últimos anos, esteve invariavelmente acima de R$ 4 bilhões, é fácil constatar que, na prática, é consideravelmente elevada a chance de um Auditor passar a receber o teto da remuneração concedida a servidores públicos – R$ 34.000,00, chegando a R$ 39.000,00 no curto prazo. Em uma conta rápida, chegamos a R$ 12.000,00 ao mês para os fiscais caso o saldo anual do Fundo for de R$ 5 bilhões (com os dados do Portal da Transparência, vemos que a remuneração média de um profissional dessa carreira é de algo como R$ 27.000,00). E isso, é preciso dizer, apenas para desempenhar o trabalho que já executa, cotidianamente. Afinal, sabe-se que a arrecadação é questão que depende de diversos fatores, em especial do nível de atividade econômica. Não é difícil pressupor que a “produtividade” de um Auditor-Fiscal, se empregada para compensar níveis baixos de arrecadação, poderá resultar em sérios problemas para o contribuinte.
Pior: considerando-se que os Auditores que atuarem como julgadores no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda (o Carf, foco da Operação Zelotes, que apura escândalo de corrupção com base na venda de sentenças promulgadas por esse órgão) também receberão o bônus, então teremos um sistema de privilégios “auto-realizável”: o Fisco cria, executa e julga a obrigação tributária. Com as metas de arrecadação na mão, não parece ser complicado “correr” atrás delas com todos os instrumentos à disposição.
Chama a atenção ainda que a MP beneficie inclusive aposentados e pensionistas dessas carreiras. Ou seja: o bônus, utilizado em tese para ampliar a capacidade de trabalho dos servidores e a sua motivação para o desempenho das tarefas, na verdade alcançará particularmente quem não mais está na ativa: 20 mil dos 30 mil Auditores Fiscais são aposentados ou pensionistas, e 6,6 mil dos 13 mil Analistas Tributários estão na mesma condição. Também não é difícil, portanto, imaginar que a medida também trará impactos para a Previdência, supostamente a grande prioridade governamental do ponto de vista da racionalização do custo do Estado.
As mesmas regras, em sentido geral, também beneficiarão Auditores do Trabalho, com a diferença de que os recursos captados para o pagamento do adicional deles virão das multas que esses profissionais aplicarão no desempenho de suas atividades. Cabe dizer que, na mais otimista das argumentações, a vinculação de uma receita à remuneração de servidores é uma grande controvérsia constitucional. Nesses tempos em que a Constituição parece ser um item descartável na definição dos certos e errados da vida pública no Brasil, provavelmente essa inquietação será deixada de lado. Vale dizer que a própria Bonificação por Resultados é um instrumento controverso dentre os estudiosos, na medida em que pode produzir incentivos avessos ao interesse público – para além de, eventualmente, não resultar de fato no aumento da produtividade do trabalhador.
A medida também ratifica o domínio dos cargos da Secretaria da Receita Federal pela carreira tributária e aduaneira, de tal forma que as funções de confiança poderão ser ocupadas apenas por Auditores Fiscais e Analistas Tributários. Os primeiros, por sinal, passam a usufruir de várias prerrogativas excepcionais, sendo qualificados a partir de agora como “autoridades tributárias e aduaneiras”. O título parece apenas nobiliárquico a princípio, mas sua implicação não é apenas simbólica: na prática, quando regulado, isso poderá significar vantagens importantes, como o direito de requisição de força policial; a possibilidade de livre acesso e de parada em qualquer via ou recinto público ou privado no desempenho dos trabalhos; a vantagem, se presos, de ficarem em celas separadas, etc.
No fundo, considerando todo esse conjunto de elementos, parece que estamos falando de algo maio, talvez de uma questão ética primordial: será que, seja para melhorar a saúde das contas públicas, seja para “valorizar” carreiras públicas, é essa “a coisa certa a ser feita”? É justo? Será que não estamos diante de um mecanismo que, por suas características, não se assemelha a uma prática de corrupção? Afinal, estamos falando da transferência de recursos e vantagens públicas para agentes privados em boa medida apenas em virtude de seu poder em gerir um aspecto sensível da Administração Pública – a arrecadação. Será que, no interesse de termos uma burocracia de alto nível, não acabamos nos tornando, ao longo do tempo, reféns de poderes excessivos e pouco controlados?
Mas essas preocupações são, realmente, questões bem menores, comezinhas, quando olhamos as argumentações trocadas entre Congressistas e representantes desses grupos de interesses. Na verdade, como já começa a ocorrer nas discussões realizadas pela Comissão Mista que debate a aprovação da MP no Senado, uma verdadeira “corrida ao ouro” entre as carreiras do serviço público, as quais também tentam, agora, “ampliar a sua produtividade” a partir da instituição de bônus para seus servidores. Mais grave, a inovação auferida pelos quadros da Receita extingue para eles a figura do subsídio, a lógica na qual o funcionário público recebe apenas uma única parcela salarial (algo que dava transparência e uniformidade às remunerações e por isso facilitava as próprias negociações salariais). Agora, poderemos voltar, no caso do Poder Executivo, à lógica dos penduricalhos (que infesta os contracheques de Magistrados e membros do Ministério Público, contornando com habilidade cada vez maior o teto remuneratório constitucional).
Em época de crise, costuma-se dizer que as perdas são socializadas: prejuízos de um setor influente são “compartilhados” com os demais, inclusive com os mais pobres, amortizando os déficits. No Brasil, contudo, parece que o jogo é mais complexo – e ainda menos republicano: nossa crise é oportunidade ainda melhor para os de cima se descolarem mais um pouco do resto. Se há tantos bilhões assim para serem gastos com quem já está no topo, porque não os investir nos setores que mais estão sofrendo com a derrocada da economia brasileira?
Sérgio Reis é Mestre em Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas, Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e integrante do serviço público federal brasileiro desde 2012
1 de Junho de 2017