Um país onde os congressistas não têm poder de decisão sobre seus salários

[show_fb_likes] Por Claudia Wallin, de Estocolmo
 

Quem mais tem o privilégio fabuloso de aumentar o próprio salário, a não ser o dono do negócio? Diz a Constituição brasileira que soberano é o povo, mas os venerandos parlamentares do nosso Congresso, que é o segundo Congresso mais caro do mundo, acabam de aprovar seu auto-aumento salarial para a próxima legislatura.
Como um peru natalino, a engorda dos vencimentos é preparada agora para ser submetida à aprovação pelo Senado, antes do alegre período festivo que dará início ao recesso parlamentar. Ganha um jeton quem adivinhar o resultado da votação.
O reajuste, de 26%, eleva os salários de deputados federais e senadores para R$ 33,7 mil. No mesmo pacote, os parlamentares aprovaram aumento de 14,6% nos salários dos juízes do Supremo Tribunal Federal, que também passam a receber R$ 33,7 mil mensais – reinará, enfim, a equiparação há tempos desejada pela maioria dos congressistas.
O impacto dos reajustes promete mais uma espetacular sangria nos cofres do dinheiro público, que financia as contas dos congressistas e dos homens da lei deste país das maravilhas. Enquanto isso, no mundo real, o piso salarial dos professores mal chega a R$ 1,7 mil, e o salário mínimo proposto para 2015 é de 790 reais.
Os números da insatisfação: atualmente, o salário dos 513 deputados e 81 senadores é de R$ 26,7 mil mensais. A isso, soma-se verba de até R$ 45 mil para gastos com atividades parlamentares, incluindo passagens aéreas, gasolina e alimentação. Além disso, todos os congressistas têm direito a apartamento funcional com mais de 200 metros quadrados, ou auxílio-moradia no valor de R$ 3,8 mil por mês – pago inclusive para deputados eleitos pelo Distrito Federal que têm residência própria em Brasília.
Também contam com verba para contratar servidores em seus gabinetes – na Câmara, a verba é de R$ 78 mil por mês para contratar até 25 funcionários. No Senado, cada senador pode contratar até 55 funcionários, a um valor estimado de R$ 82 mil mensais.
Talvez diante de uma filosófica preocupação com a imagem do Congresso, optou-se por um reajuste destinado a garantir a correção inflacionária dos subsídios parlamentares nos últimos quatro anos. Os juízes do STF queriam mais – a proposta de aumento apresentada ao Congresso elevaria seus salários para R$ 35,9 mil -, mas um acordo costurado pela Câmara com o STF reduziu o valor para o mesmo patamar do salário dos congressistas.
Para ministros de Estado, presidente e vice-presidente da República, o reajuste proposto pelo Executivo ao Congresso foi de 15,7% – o que vai elevar os salários para R$ 30,9 mil. Ou seja: os parlamentares passarão a ganhar mais do que a presidente da República.
”Se eles (Poder Executivo) querem optar por um valor menor, é um direito deles”, disse ao repórter do UOL o líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha.
Há quem discorde.
“Eu acho que a gente já ganha o suficiente. Não precisa de aumento”, disse o deputado Tiririca (PR-SP).
Como sempre, o reajuste salarial concedido pelos parlamentares a si próprios passa a gerar um efeito cascata nas assembléias estaduais e municipais, a beneficiar os interesses de quem representa os interesses do cidadão. A cena se repetirá no Judiciário.
Vai-se, assim, chicoteando o decoro.
Para um cidadão sueco, imaginar o auto-aumento de seus representantes seria um Ragnarök, o fim do mundo da mitologia nórdica.
Na Suécia, um dos lugares mais caros do mundo, os parlamentares ganham um salário que equivale a cerca de R$ 20,6 mil mensais. Nenhum deputado tem direito a verba indenizatória para pagar assessores, aluguel de escritório, consultorias ou divulgação de mandato. Nenhum parlamentar tem direito a carro com motorista, plano de saúde privada, aposentadoria vitalícia nem imunidade parlamentar.
Quem decide os salários dos parlamentares suecos é um comitê independente, chamado Riksdagens Arvodesnämd. Este comitê é integrado por três pessoas: um presidente, que via de regra é um juiz aposentado, e dois representantes públicos, em geral ex-servidores públicos ou jornalistas.
Quando entrevistei o atual presidente do órgão, durante a preparação do livro ”Um País Sem Excelências e Mordomias”, o jurista Johan Hirschfeldt destacou que a decisão do comitê é soberana: não pode ser contestada, e não necessita ser submetida a votação no Parlamento.
”Os parlamentares não têm nenhum poder de decisão no processo. E não sei se ficam satisfeitos ou não com o reajuste salarial, porque nenhum parlamentar nunca telefonou para pedir mais, nem reclamar”, disse Hirschfeldt, que é ex-presidente da Corte de Apelação de Estocolmo.
Telefono agora para Hirschfeldt, e pergunto qual foi o percentual do reajuste salarial concedido neste ano de 2014 aos parlamentares suecos.
”2,1%”, responde o jurista do outro lado da linha. ”Um pouco acima da inflação”.
O comitê mantém reuniões periódicas de consultas e análise, e se reúne uma vez por ano para tomar sua decisão – embora o reajuste salarial dos parlamentares não seja obrigatoriamente anual.
”Geralmente, tentamos estabelecer um percentual de reajuste que reflita as tendências e variações econômicas da sociedade como um todo”, explica o jurista.
É preciso destacar, aqui, que no mais igualitário sistema sueco as diferenças salariais são menos exorbitantes: descontados os impostos, por exemplo, um deputado do Parlamento sueco recebe, em valores líquidos, cerca de 50 por cento a mais do que ganha um professor do ensino médio.
O presidente do comitê responsável pelo reajuste salarial dos deputados suecos prossegue:
”Antes de iniciarmos nossas discussões, analisamos diferentes estatísticas e informações sobre a evolução dos salários das diferentes categorias profissionais em nossa sociedade.
Esses números incluem acordos coletivos realizados através dos sindicatos, assim como variações salariais do funcionalismo público, dos governos locais e também do setor privado.
Também incluímos em nossas análises as estatísticas do Banco Central, os números da inflação e o desenvolvimento geral da economia em nosso país. Todas estas informações formam a base de uma decisão sobre um eventual aumento de salário para os parlamentares”, ele detalha.
Pergunto a Hirschfeldt se o comitê se orienta a partir de algum parâmetro-base, no que se refere às variações salariais das diferentes categorias trabalhistas.
”Na Suécia, a variação do salário de um trabalhador da indústria metalúrgica é geralmente considerado um patamar para a discussão de reajustes tanto no setor público como no privado. É, digamos assim, um parâmetro informal”, diz o jurista.
É este parâmetro informal que norteia especialmente o índice de reajustes de salários nos órgãos estatais e nas autoridades regionais, destaca o jurista:
”É preciso ser cuidadoso. Não se pode usar, para a esfera pública, índices de reajuste superiores àqueles aplicados no setor privado”.
A independência do comitê que determina os reajustes salariais dos parlamentares, segundo afirmam jornalistas suecos com quem conversei, é absoluta – apesar de os integrantes serem nomeados pela Mesa Diretora do Parlamento.
”Não há nenhum político entre nós. Somos um comitê independente, com independência garantida pela Constituição. A Mesa Diretora do Parlamento não pode nos dar nenhuma diretriz”, confirma o presidente do órgão.
Aumentos de salário dos ministros e do primeiro-ministro da Suécia também são decididos por um comitê independente, o Statsrådsarvodesnämden. Os nomes dos três integrantes do comitê – também presidido por um juiz aposentado – são propostos pela Comissão de Constituição do Parlamento, e submetidos a votação no Parlamento. Comitês independentes regulam ainda os salários dos diferentes Ombudsman (ouvidores) e auditores nacionais da Suécia.
O salário dos parlamentares suecos se alinha, aproximadamente, aos vencimentos de um juiz de primeira instância – embora não exista nenhum tipo de vínculo formal. Já o salário de um juiz da Suprema Corte sueca é de 100 mil coroas suecas – o equivalente a aproximadamente R$ 35 mil. Mas na Suécia, juízes do Supremo não recebem auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio-transporte, abono de férias ou qualquer outro benefício. Nem têm direito a carro com motorista ou plano de saúde privada.
E os juízes? Quem determina o salário dos juízes suecos? – quero saber. ”É um caso peculiar”, diz o jurista.
Como assim?
”O salário dos juízes, na Suécia, são estabelecidos segundo os mesmos princípios do mercado de trabalho em geral. Temos o sindicato dos juízes, e um comitê nacional de administração dos tribunais – que decide inclusive os salários dos juízes da Suprema Corte. Os reajustes são negociados entre as duas partes. E se não houver acordo, os juízes podem entrar em greve.
Mas greve de juízes é algo de que não se tem memória na Suécia.
”O sistema sueco tem muitas tradições”, diz Johan Hirschfeldt. ”E uma destas tradições é o bom-senso e a integridade dos representantes da Justiça. Porque a confiança dos cidadãos nos juízes é um elemento-chave do nosso sistema”, destaca Johan Hirschfeldt.
Sobre o sistema de auto-aumento que vigora entre os representantes dos cidadãos no Brasil, o jurista prefere exercitar a discrição sueca.
”Não me parece apropriado emitir minha opinião sobre o sistema de um outro país, como o Brasil. O que posso dizer é que para nós, na Suécia, delegar decisões sobre reajustes salariais das autoridades do país a comitês que sejam de fato independentes é a forma mais justa e íntegra de lidar com essa questão.”
 
* Texto publicado no DCM – Diário do Centro do Mundo
 

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Claudia Wallin
Sobre o Autor

A jornalista brasileira Claudia Wallin, radicada em Estocolmo, é autora do livro Um país sem excelências e mordomias.

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