”Dormir em um sofá-cama no gabinete não era nenhum problema”
Nos tempos de Eva, nem a visão mais demente do paraíso poderia descrever a realidade da vida de um parlamentar sueco. Pratos e roupas eram lavados a mão na pia do gabinete, cama não havia, apartamentos funcionais não existiam. Durante os quatro primeiros anos do seu mandato, de 1994 a 1998, Eva Flyborg, deputada do Partido Popular Liberal (Folkpartiet), dormiu em um sofá-cama no próprio gabinete, no Parlamento.
Chego ao Parlamento para a conversa com Eva numa manhã gelada do inverno sueco, dessas em que até os cachorros tremem nas ruas debaixo de suas roupas especiais de passear no frio. No saguão de entrada, sou recebida por um funcionário que me encaminha ao escritório da deputada, na ala do Parlamento reservada ao Partido Liberal. Pergunto se ele é o assessor de Eva Flyborg. ”Trabalho em meio expediente auxiliando Eva e outros oito deputados em diferentes tarefas. Na Suécia não existem assistentes particulares para parlamentares”, pontua Lars Johansson, o assessor coletivo.
Porta-voz do Folkpartiet para assuntos relacionados a energia, indústria e comércio, Eva Flyborg é economista e ex-funcionária da montadora sueca Volvo. Ela nasceu em 1963 em Otterhällan, na região de Gotemburgo (costa oeste da Suécia), e é também conhecida como a fundadora da Associação de Fãs dos Beatles do Parlamento sueco.
Em seu atual escritório de 12 metros quadrados, sem secretária na porta, copa com cafezinho ou banheiro privativo, a deputada contou como era a vida dentro do gabinete naqueles idos de 1990.
EVA FLYBORG: O escritório era pequeno, tinha cerca de 10 metros quadrados. Havia um banheiro bem pequenino, uma máquina de café, uma torradeira, e isso era tudo. Tínhamos que lavar os pratos e as roupas na pia do banheiro. No subsolo havia uma lavanderia coletiva, que poderia ser usada caso não estivesse ocupada por alguns dos outros mais de 300 deputados.
. Não era uma lavanderia grande?
EVA FLYBORG: ”Não, não. Era uma lavanderia pequena. Duas máquinas de lavar”.
. Duas máquinas de lavar para 349 deputados?
EVA FLYBORG: Sim, duas. Muitos deputados preferiam lavar a roupa na pia do banheiro do escritório ou então levar as roupas para casa, em seus estados de origem, e trazê-las de volta limpas.
. E as roupas lavadas, era preciso pendurar no próprio escritório?
EVA FLYBORG: Sim. Aonde mais eu poderia pendurar? Eu só tinha o meu escritório. Então eu pendurava as roupas nas cadeiras, no computador, no abajur. De manhã, quando estavam secas, era só recolher.
. Trabalhar e dormir dentro do escritório no prédio do Parlamento era considerado normal, ou havia um sentimento de insatisfação entre os deputados?
EVA FLYBORG: Não, era normal, sem problemas.
. Nenhum deputado reclamava dessas condições?
EVA FLYBORG: Você vive um tipo de vida diferente quando é deputado. Não é um emprego normal. E você sabe disso desde o princípio. Eu fui escoteira quando era garota, então para mim não era nenhum problema dormir num sofá-cama no escritório. E os suecos são um povo muito prático. Você faz o melhor que pode. Se tem que lavar uma roupa e precisa ser na pia do banheiro, tudo bem.
. Por que então o Parlamento decidiu criar apartamentos funcionais para parlamentares, a partir do fim da década de 90?
EVA FLYBORG: A decisão de criar apartamentos funcionais para deputados só foi tomada com base na obediência a normas legais de segurança contra incêndio e também a normas ambientais. Porque chegou-se à conclusão de que era arriscado demais ter deputados vivendo, comendo e acendendo velas em seus escritórios, em meio a todos esses documentos e livros. Por isto, tiveram que nos retirar dos prédios do Parlamento. Do contrário, ainda estaríamos vivendo em nossos escritórios.”
. A senhora estaria?
EVA FLYBORG: Sim, estaria. Não é nenhum bicho de sete cabeças. Veja bem, a minha casa não é aqui na capital. Minha casa é em Gotemburgo. É lá que eu vivo, é lá que estão a minha família, o meu carro, os meus amigos. Eu apenas trabalho em Estocolmo durante parte da semana. Até alguns anos atrás, eu ficava de segunda a sexta-feira na capital por conta da minha agenda parlamentar, e às vezes também durante o final de semana. Em algumas ocasiões, era necessário permanecer em Estocolmo durante um mês. Atualmente, passo quatro dias por semana na capital.
. Como a senhora compara o sistema sueco em relação a países nos quais os políticos gozam de privilégios como espaçosos gabinetes e apartamentos funcionais, motoristas, secretárias e assessores particulares?
EVA FLYBORG: Em primeiro lugar, não julgo nenhum país. Cada sociedade faz suas próprias escolhas. Mas devo dizer que certos privilégios concedidos a políticos em certos países me parecem excessivamente exorbitantes. Talvez isso seja um reflexo da visão da sociedade destes países de que a representação política é uma função importante, que deve portanto ter status social. Na Suécia, não atribuímos status algum à função de político. Talvez seja esta a diferença. E se alguém chamasse algum deputado aqui de Excelência, as pessoas iam achar ridículo. Somos todos iguais. Ninguém está acima de ninguém. Com uma única exceção: a Família Real. Mas a Família Real não tem mais poderes.
. Como é o seu atual apartamento funcional?
EVA FLYBORG: ”Hoje vivo em um dos maiores apartamentos funcionais do Riksdag, que tem 48 metros quadrados. Isso porque sou deputada há muitos anos, e também porque meu filho vivia comigo aqui. Então, foi uma conjunção de fatores.”
. É um apartamento de dois quartos?
EVA FLYBORG: Não, apenas um quarto. Pequeno. Eu dividia o quarto com meu filho, que atualmente estuda em Gotemburgo.
. A senhora precisava pagar para que seu filho vivesse no apartamento funcional?
EVA FLYBORG: Não, porque na época ele tinha menos de 12 anos de idade. Acima de 12 anos, qualquer filho de parlamentar precisa pagar para ter direito a viver ou pernoitar no apartamento funcional, o que é normal. Em qualquer hotel, crianças acima dessa idade têm que pagar para dormir.
. O apartamento tem alguma comodidade, como máquina de lavar, ou de lavar pratos?
EVA FLYBORG: Não, não há nada disso. Temos uma lavanderia no subsolo do prédio. São duas máquinas de lavar para dois edifícios, que têm cerca de 80 apartamentos no total. ”
. Deputados lavam roupa e passam suas próprias camisas?
EVA FLYBORG: E quem mais deveria fazer isso? Por que alguém deveria fazer isso para você, se você sabe fazer? É também mais prático. Eu passo a minha camisa em dois minutos. Se eu fosse deixar na lavanderia, teria que gastar tempo e dinheiro. Não tenho tempo para isso. É mais fácil eu mesma fazer. Faço jantar em vinte minutos, e passo minha camisa em dois minutos. É um esquema bastante eficiente”.
. Como deputada e integrante da comissão parlamentar de Indústria e Comércio, a senhora não tem assistente particular no seu gabinete.
EVA FLYBORG: Não. Eu e outros oito deputados dividimos um assistente, que trabalha em regime de meio expediente.
. Não há uma secretária para ajudá-la, por exemplo, a marcar uma passagem de avião para participar de um encontro ou conferência?
EVA FLYBORG: Não. E é mais rápido e eficiente eu mesma fazer, em vez de falar com uma secretária que vai telefonar para a agência de viagens, voltar a falar comigo sobre diferentes opções de vôo, e então ligar de novo para a agência de viagens, até achar a alternativa que me atende melhor, de acordo com as necessidades e restrições da minha agenda pessoal. Não seria portanto muito eficiente dar essa tarefa a uma secretária, não é verdade?
. Não, a menos que a deputada tivesse uma secretária particular que organizasse seus compromissos e coordenasse a sua agenda pessoal.
EVA FLYBORG: Bem, isso não existe aqui na Suécia. Nenhum deputado tem secretária particular.
. Seria algum privilégio exorbitante ter secretária particular?
EVA FLYBORG: ”Na minha opinião, sim. Porque não é justo com o restante da sociedade. Seria demais. E um deputado não precisa disso. Privilégios tendem a transformar um deputado, e políticos em geral, em pessoas acima dos cidadãos que os elegeram. Dessa maneira, cria-se uma distância entre o povo e seus representantes, o que por sua vez gera um sentimento de desconfiança e descrença da população em relação aos políticos.