Claudia Wallin, correspondente da RFI em Estocolmo
Desde o início da pandemia do novo coronavírus, o pilar central da estratégia sueca de combate ao Covid-19 tem se baseado majoritariamente não em imposições restritivas, e sim em recomendações baseadas na responsabilidade individual. Mas nos últimos dias, as redes sociais suecas têm sido bombardeadas por críticas contra políticos e autoridades que, durante as festas de fim de ano, violaram as normas recomendadas à população a fim de conter a virulência da segunda onda da epidemia no país.
Os alvos do bombardeio popular incluem o próprio primeiro-ministro sueco, Stefan Löfven, flagrado em um shopping center da capital pouco antes do Natal. Mas a primeira vítima da onda de protestos é o diretor geral da Agência Nacional de Proteção e Defesa Civil, Dan Eliasson, que se viu forçado a apresentar sua renúncia na quarta-feira (6).
No sábado 2 de janeiro, o jornal Expressen havia revelado imagens de Eliasson desembarcando de um vôo proveniente das Ilhas Canárias, onde passou o feriado de Natal com a família – em plena crise nacional na Suécia – na companhia da filha que reside no arquipélago espanhol.
Em virtude do escândalo, a agência governamental (MSB, na sigla em sueco) foi rebatizada pelos internautas suecos como “Myndigheten för Sol och Bad” – “Autoridade para o Sol e o Banho de Mar”.
No dia 8 de dezembro, o governo apresentara as recomendações à população sobre as restrições para o período natalino – incluindo a orientação de só viajar em caso de absoluta necessidade. Pouco mais de uma semana depois, Eliasson embarcou para as Canárias.
A Agência de Proteção e Defesa Civil está diretamente envolvida na gestão da crise do Covid-19 no país: ela é o órgão responsável por coordenar ações de defesa civil e segurança pública em todo o território nacional, além de responder pelo gerenciamento de emergências nacionais. Em dezembro, a agência enviou um SMS aos celulares de todos os habitantes da Suécia, com um alerta sobre a importância de seguir as recomendações da Agência Nacional de Saúde Pública para o enfrentamento da pandemia.
Primeiro-ministro e ministro no shopping
Pouco antes do Natal, em um contundente pronunciamento à nação, o primeiro-ministro Stefan Löfven havia sido enfático: em tom de gravidade, ele olhou diretamente para a câmera e conclamou a população a se abster de viagens, compras e encontros familiares: “Cancele! Suspenda! Adie!”
Contra suas próprias recomendações, entretanto, Löfven foi visto no shopping center Gallerian, no centro da capital, dois dias depois.
Diante da repercussão negativa nos jornais e nas mídias sociais, o primeiro-ministro fez um mea culpa em seu perfil no Instagram:
“Compreendo que as pessoas tenham reagido ao ler que eu saí para resolver uma série de coisas. Saí para comprar alimentos, para consertar um relógio, para procurar peças de reposição para meu barbeador, para ir ao Systembolaget (a loja do monopólio estatal de venda de álcool) e para comprar um presente de Natal para minha esposa, Ulla. Em todas essas ocasiões, procurei me assegurar de que os locais não estavam cheios. E também eu, exatamente como tantos outros, em geral tenho sempre seguido as recomendações e conselhos das autoridades de saúde. Mas olhando em retrospectiva, penso é claro que eu poderia por exemplo ter comprado o presente de Natal via internet, com a antecedência necessária”, admitiu Löfven.
“Isso só poderia ter acontecido em um país como a Suécia”, observou o jornalista Richard Swartz no jornal Dagens Nyheter. “Em qualquer outro país, o primeiro-ministro teria mandado um de seus assessores para consertar o barbeador ou até mesmo para comprar o presente da Natal da esposa. Mas na Suécia, um político não usa um subordinado para cuidar das suas tarefas pessoais”, acrescentou ele.
Seja como for, as fortes reações públicas ao deslize de Löfven não arrefeceram – e o tom das críticas foi em seguida elevado, em consequência das revelações de que outros políticos também haviam burlado as recomendações para fazer frente à pandemia.
Em seu pronunciamento pré-natalino, o primeiro-ministro havia pedido à população que também evitasse ir às populares liquidações do período pós-festas. “Naturalmente, não podemos de forma alguma ter as liquidações como de costume. Todos precisam exercer sua responsabilidade”, disse Stefan Löfven na TV pública SVT.
Mas no dia 29 de dezembro, o ministro da Justiça e Migração, Morgan Johansson, foi fotografado na fila para entrar na liquidação de um shopping center na cidade de Lund (sul da Suécia).
“Visitei um shopping center no dia 26 de dezembro para comprar um presente de Natal atrasado para meus pais. Foi uma imprudência de minha parte, e eu deveria ter planejado melhor as minhas compras. Entretanto, o local estava relativamente vazio, e foi possível manter o distanciamento social graças ao trabalho dos seguranças que supervisionavam a entrada de pessoas no local”, defendeu-se o ministro.
Um internauta rebateu a fala de Johansson: “O shopping estava vazio porque a maioria de nós seguiu as recomendações do governo para evitar ir a lojas e shopping centers, e ficou em casa”.
Ministra em estação de esqui
E mais uma vez, nos dias seguintes os suecos veriam nos jornais novos exemplos de que seus políticos não estavam, em certa medida, exatamente praticando o que pregam.
No dia 30 de dezembro, veio à tona uma foto da ministra das Finanças, Magdalena Andersson, alugando esquis na estação turística de Sälen (oeste da Suécia) antes do Natal.
“A ministra Magdalena Andersson fez uma visita à sua filha, que trabalha em outra região da Suécia. A ministra procura sempre agir em respeito ao distanciamento social e às recomendações da Agência de Saúde Pública”, disse a porta-voz da ministra.
Segundo o jornal Svenska Dagbladet, dois outros altos funcionários também viajaram durante os feriados de fim de ano: o diretor geral da Agência Nacional de Migração, Mikael Ribbenvik, voou para Malta, e a chefe da agência governamental de Fortificações (Fortifikationsverket, que gerencia as instalações militares) foi para uma estação de esqui nas montanhas da Suécia.
Um alto integrante do oposicionista Partido Moderado – o segundo maior do país – também passou o Natal nas Ilhas Canárias, e pediu desculpas públicas em meio à onda de protestos:
“Admito e peço desculpas: também eu estive em Las Palmas durante o feriado. Minha esposa está trabalhando lá, e fui levar remédios e passar o Natal com ela. Mas diante dos sacrifícios de todos os demais suecos, há todas as razões para considerar que eu deveria ter deixado de viajar”, escreveu Hans Wallmark, que é o porta-voz do Partido Moderado para assuntos de relações exteriores.
Mas a revelação sobre a viagem do diretor geral da Agência Nacional de Proteção e Defesa Civil às Ilhas Canárias foi a gota d´água.
Tecnicamente, Eliasson não violou nenhuma legislação: no curso da pandemia, a Suécia introduziu poucas leis que prevêem punição legal em caso de violação, como por exemplo no caso da proibição de organizar eventos públicos com mais de oito pessoas. Em vez disso, a estratégia sueca se baseia primordialmente em recomendações – que, conforme autoridades como a própria Agência Nacional de Proteção e Defesa Civil têm repetidamente destacado, não devem ser consideradas opcionais.
Ao desembarcar do avião no retorno à capital sueca, Dan Eliasson entrou rapidamente em um carro que o aguardava na pista de pouso.
“Deixei de fazer muitas viagens durante o ano, mas considerei que essa era necessária”, disse Eliasson ao jornal Expressen após o vazamento das fotos de seu desembarque.
Com a afirmação de que sua viagem de Natal com a família era “necessária”, a situação se tornou insustentável para o diretor da agência. Um dia antes da renúncia de Eliasson, uma pesquisa do jornal Aftonbladet indicou que 62 por cento dos entrevistados tinham “muito pouca” confiança no diretor geral.
Protestos
“A viagem de férias de Eliasson é um escárnio contra todos nós que nos abstivemos de tudo o que costumamos fazer a fim de seguir as recomendações das autoridades”, escreveu uma leitora no jornal Dagens Nyheter.
“Minha confiança na democracia sueca sofreu um severo golpe”, destacou no mesmo jornal o sueco Niklas Forsén, que vive em Portugal:
“Eu e minha mulher tínhamos planejado viajar à Suécia para passar as festas de fim de ano com nossos filhos. Mas diante do pronunciamento do primeiro-ministro à nação, conclamando todos a adiarem tudo, decidimos cancelar nossa viagem. Todos em nossa família também deixaram, pela primeira vez na vida, de comprar presentes de Natal. Passado o feriado, leio que vários de nossos ministros, incluindo o próprio primeiro-ministro, saíram para comprar presentes de Natal, foram às liquidações e esquiaram nas montanhas”, desafabou Forsén.
Diante da pressão popular, o diretor geral da Agência Nacional de Proteção e Defesa Civil anunciou sua renúncia após uma reunião com o ministro do Interior, Mikael Damberg.
“Dan Eliasson tomou uma decisão errada, que teve enormes consequências”, disse Damberg.
O líder do Partido Moderado, Ulf Kristersson, classificou a saída de Eliasson como “necessária” – o mesmo adjetivo empregado pelo diretor geral para justificar sua viagem em plena crise da pandemia:
“A pessoa que lidera todas as operações emergenciais em território nacional não pode dizer aos cidadãos que se abstenham de tudo, e em seguida viajar de férias para o exterior”, destacou Kristersson.
Confiança abalada
Muitos se perguntam agora com que autoridade o primeiro-ministro Stefan Löfven poderá vir a público da próxima vez para pedir a seus concidadãos que exerçam sua responsabilidade individual, a fim de livrar o país dos efeitos perversos de uma pandemia que já provocou na Suécia uma taxa de mortalidade até 10 vezes superior à de seus vizinhos nórdicos.
Após o ato da renúncia de Dan Eliasson, o arquiteto da estratégia sueca de combate ao coronavírus, Anders Tegnell, disse à imprensa sueca que a recomendação sobre realizar apenas “viagens necessárias” permanece:
“Viagem necessária é aquela que não pode ser evitada, por diferentes razões. Continuamos a acreditar que é preciso reduzir as viagens o máximo possível”, disse Tegnell.
Mas é visível o impacto negativo na confiança da população em seus representantes, provocado a partir dos desvios praticados por políticos suecos em relação às regras da panemia durante as festas de fim de ano: em várias mídias sociais, circulam vídeos de cidadãos indignados.
Perguntado sobre se os incidentes ocorridos com diversos políticos podem abalar a estratégia sueca, baseada na confiança nas autoridades, ele disse: “Não sei. Veremos como a situação se desenvolverá”.
De acordo com as estatísticas oficiais desta sexta-feira, a Suécia contabiliza 482.284 casos confirmados do novo coronavírus, e 9.262 mortes.
8 de Janeiro de 2021