Por Claudia Wallin – Memórias de um inverno memorável
Com a pouca sanidade que me resta, posso jurar que vi agora há pouco, na TV sueca, um deputado do Parlamento preparando-se para dormir na sala da casa de um casal de cidadãs suecas. Ele se ajeita como pode em uma velha dragoflex, aquela cama dobrável de lona. “Amanhã o Eliott (o cachorro) vai acordá-lo com umas lambidas”, avisam as donas da casa.
Consulto o termômetro para verificar o grau desta febre de inverno que me ataca, pois ando, como o Cavaleiro de Bergman, jogando xadrez com a morte. Não, não é alucinação: trata-se da nova série da TV pública sueca, que leva o nome de “Makt Hos Mig” – ou “O Poder na Minha Casa”.
A ideia sueca: oito políticos pesos-pesados do Parlamento mudam-se durante um dia para a casa de jovens eleitores, com diferentes backgrounds e questões, para ouvir a sua voz. O time escalado incluiu a então Vice-Primeira-Ministra e ministra do Meio-Ambiente do país, Åsa Romson; o ministro do Interior, Anders Ygeman, e a líder do Centerpartiet (Partido do Centro), Annie Lööf.
“Todo poder emana do povo, mas muitos jovens consideram os políticos do Parlamento como seres distantes. O que acontece quando oito jovens têm a chance de levar um deputado para casa, e decidir a pauta de debates por um dia?” – diz a sinopse da série idealizada pela UR, a produtora de programas educativos da TV pública sueca.
Nem os jovens, e nem os políticos, sabem de antemão com quem vão passar as 24 horas. No primeiro programa que assisto, o deputado democrata-cristão Aron Modig é recebido na casa de Elsa, de 19 anos, que vive com a namorada Elvira.
Elsa aponta para a cama de armar (“é aqui que você vai dormir”), prepara um café, e conduz o deputado a um parque próximo, onde os dois passam a conversar sobre o tema que perturba a eleitora: o ainda perceptível preconceito contra casais homossexuais.
“Há três anos, eu e minha namorada fomos atacadas neste parque por uma gangue de meninas, porque tínhamos nos beijado. Comecei a ter ataques de pânico e tive problemas psíquicos durante mais de um ano”, contou Elsa ao atento deputado, que deve ter pressentido a estocada a caminho:
“Nunca poderia votar em um partido como o seu, que em pleno século XXI ainda hesita em declarar apoio ao direito de casais homossexuais adotarem crianças”.
O deputado pondera que discorda pessoalmente da visão partidária, e que já há movimentos internos para quebrar essa resistência. E diz a Elsa que dificilmente uma pessoa concordará com 100% das posições de um partido político: a solução é buscar o partido mais afinado possível com as convicções de cada um, a fim de participar do processo de transformação social.
“Aprendi um bocado”, diz o deputado Aron Modig no fim da visita.
Elsa também.
“Ganhei uma injeção de ânimo para pesquisar as posições dos diferentes partidos políticos e voltar a me engajar”, resumiu ela.
“Seu trem o espera”, diz então ao deputado o apresentador do programa, o rapper sueco Ison Glasgow.
No programa seguinte, foi a vez de Åsa Romson, a então vice-Primeira-Ministra, mudar-se para a casa de Emilia, 21 anos. É uma Åsa descontraída, de jeans e cara lavada, que faz a pequena mala e pega um trem para passar um dia fora dos corredores do poder.
Logo após a chegada, as duas pegam um ônibus para um subúrbio da cidade de Linköping, onde Emilia trabalha em uma fundação que cuida de jovens com problemas psíquicos decorrentes de traumas como bullying e violência sexual.
A vice-primeira-ministra ouve os muitos dramas contados por Emilia – ela própria vítima de um estupro aos 16 anos -, surpreende-se com o corte de verbas enfrentado pela fundação, e termina o dia em uma cama improvisada na sala da casa da jovem.
“O que você vai levar dessa experiência com Emilia?”, pergunta à vice-primeira-ministra, na manhã seguinte, o rapper que apresenta o programa.
“Ficou ainda mais claro para mim que investir em programas sociais, para ajudar jovens com diferentes problemas a encontrar seu lugar na sociedade, é melhor do que gastar dinheiro com prisões”, responde Åsa, antes de entrar no trem de volta para a capital.
O programa seguinte promete: Per, um ex-delinquente e ex-drogado de 24 anos que tem pavor da polícia, vai receber ninguém menos que o ministro do Interior, Anders Ygeman.
A coisa começa mal. Nervoso, Per vê Anders ser escoltado à sua casa por agitados agentes da Säpo, o serviço secreto sueco. Outra bola fora: o ministro chega de terno e gravata ao apartamento de Per, em um subúrbio de Estocolmo, e em nenhum momento pendura o paletó.
Aos poucos, o gelo vai sendo quebrado com um café na cozinha. “Não consegui limpar direito a casa”, desculpa-se Per. O ministro ouve em seguida a história de Per.
“Sempre fui tratado como um problema. Sentia que todos me odiavam. Por que então eu deveria respeitar as regras deles? Me revoltei, quebrei janelas, roubei, virei alcoólatra, e depois vieram as drogas”, conta Per, que hoje trabalha na mesma organização que o ajudou a reintegrar-se à sociedade.
“Pessoas como eu, com o meu tipo de problema, precisam ser vistas”.
Os dois passam a conversar sobre como investir no futuro de jovens como Per, e – de novo, como reza o credo sueco – na inutilidade de se gastar mais dinheiro com prisões.
Per convida em seguida um grupo de amigos, também com antigas passagens pela criminalidade, a conhecer o ministro na sua casa. Juntos, eles preparam o jantar e fazem uma sessão de Poetry Slam com o ministro, que a essa altura já arregaçou as mangas.
“Quem vai lavar a louça?”, pergunta Per no fim da noite.
“Pede para o Anders (o ministro), respondem os amigos, já na porta de saída.
É o que acontece. A cena seguinte mostra o ministro do Interior enfrentando a pia. Volto a consultar meu termômetro.
* Veja aqui o vídeo (em sueco) do programa com a então Vice-Primeira-Ministra sueca, Åsa Romson, na casa de Emilia
* Veja aqui o vídeo (em sueco) do programa com o Ministro do Interior sueco, Anders Ygeman, na casa de Per
* Veja aqui o vídeo (em sueco) do programa com o deputado do Parlamento Aron Modig, na casa do casal Elsa e Elvira
19 de dezembro de 2016
* Artigo inédito de Dezembro de 2015