Uma conversa com o deputado Kent Härstedt

 

Kent Härstedt / Foto: jornal Svenska Dagbladet

”Não temos luxos supérfluos. Para ter o respeito dos cidadãos que representamos, é preciso usar o dinheiro dos contribuintes de forma sensata. Há pessoas desempregadas e outros problemas em nosso país, e o dinheiro público deve ser usado de forma mais inteligente” – Kent Häsrtedt
O deputado social-democrata Kent Härstedt é um sobrevivente, no sentido mais trágico da palavra. Ele sentia medo e a noite era fria naquele 28 de setembro de 1994, quando o navio Estonia começava a afundar num furioso Mar Báltico com 989 pessoas a bordo. Ondas gigantescas haviam arrebentado as travas da rampa de embarque de veículos do ferry.Em poucos minutos, a madrugada se transformaria num inferno.
 
No bar do imenso navio, garrafas voavam como projéteis, e passageiros eram lançados contra o chão e as paredes. Quebravam pernas e braços, sangravam. Morriam.  Em pânico, muitos se jogam do convés e caem sobre o casco inclinado do navio. Outros tentam desesperadamente se agarrar a botes salva-vidas, que explodem. O convés está repleto de coletes salva-vidas. Mas na luta cega pela sobrevivência, alguns arrancam os coletes de outros passageiros da agonia do Estonia, que faria a travessia entre Tallin e Estocolmo. (fonte: jornal Svenska Dagbladet, ”Tio år efter Estonia”, 26/09/2004)
Kent Härstedt sabe que é hora de pular no mar revolto e gelado.  As ondas chegam a sete metros de altura e muitos morrerão por hipotermia, com a temperatura da água a dez graus na superfície do mar. Ele salta e se debate, até conseguir subir num bote salva-vidas que havia virado. Antes de o socorro chegar, várias pessoas que estavam no bote com Kent estavam mortas, e seis estavam vivas.
Dezenove anos depois da tragédia, encontro Kent em seu gabinete de cerca de dez metros quadrados no Parlamento sueco. Pergunto como ele conseguiu ser um dos 137 sobreviventes de um dos piores desastres marítimos do pós-guerra na Europa, e sua fisionomia se contrai.
”Quando as pessoas morreram, começamos a juntar seus corpos e os colocamos sobre nós. Fiquei deitado sob os cadáveres, para que os corpos pudessem me proteger do frio e manter-me aquecido. Não sei quantos mortos havia sobre mim. As ondas eram muito altas e o mar se chocava contra o bote”, conta Kent, que tinha 29 anos de idade na época.
Representante parlamentar da região de Skåne desde 1998, Kent sobrevive hoje, sem traumas, à rotina típica de um deputado sueco.
 
. O senhor sobreviveu a um naufrágio que matou 852 pessoas. Também se considera um privilegiado por ter se tornado um político?
KENT HÄRSTEDT: Depende do que você define como privilégio. Tenho direito a um celular, um gabinete parlamentar com TV a cabo, um apartamento funcional na capital e acesso a consultores especializados que trabalham para os deputados no Serviço de Pesquisas do Parlamento. De resto, faço de tudo, desde escrever discursos, artigos e moções parlamentares até marcar passagens de avião. Não tenho secretária, assistente nem assessor particular. Tenho na verdade o correspondente a ¼ de um assistente, que se divide entre trabalhos para mim e outros 3 deputados.
 
. Muitos suecos consideram um privilégio o fato de um parlamentar receber um salário bem mais alto do que o de um professor, por exemplo.
KENT HÄRSTEDT: Entendo o que eles sentem, pois o salário de um deputado está acima da média salarial de muitos trabalhadores. Mas o trabalho é bastante intenso, e temos também muitos gastos. Para os parlamentares de outras regiões, além disso, sempre custa mais caro viver em duas cidades, apesar de os apartamentos funcionais na capital serem subsidiados. Mas não temos luxos supérfluos, como se vê em outros países. Não consigo me imaginar tendo secretária particular, ou carro com motorista.
. Por quê?
KENT HÄRSTEDT: Para ter o respeito dos cidadãos que representamos, é preciso usar o dinheiro dos contribuintes de forma sensata. Há pessoas desempregadas e outros problemas em nosso país, e penso que o dinheiro público deve ser usado de forma mais inteligente. Nós vivemos como pessoas normais. Ingvar Carlsson (ex-primeiro-ministro sueco) estava sempre no ponto de ônibus quando saía do trabalho. Na semana passada, eu o vi na mesma parada de ônibus. Você caminha pelas ruas e vê ministros andando. Todos vivem vidas normais.
. Os políticos suecos têm o respeito dos cidadãos?
KENT HÄRSTEDT: Em geral, as pessoas crêem que somos indivíduos confiáveis e honestos. Talvez não aprovem tudo que nós fazemos ou decidimos, mas de modo geral os eleitores acreditam que somos pessoas íntegras. Para isso é importante que nós, deputados, não tenhamos um padrão de vida tão diferente daquele dos cidadãos que representamos. Queremos estar o mais próximo possível das condições em que vivem as pessoas que representamos, embora tenhamos uma vida diferente – nós viajamos, redigimos leis, temos certos privilégios.
. Quais privilégios?
KENT HÄRSTEDT: Como deputado, você tem a oportunidade de encontrar pessoas importantes e de influenciar o futuro do país, e considero isto um privilégio. Mas penso que alguns aspectos poderiam ser melhorados na Suécia. Não acho necessário ter muitos assistentes, o que eu considero um luxo exagerado. Mas ter um assessor político trabalhando comigo em tempo integral seria desejável, em termos de auxiliar a elaboração de projetos de lei, moções, discursos e artigos. Gostaria de ter este privilégio no aspecto profissional, em vez de regalias na minha vida particular, como um apartamento funcional maior ou um motorista particular. No meu mundo, ter um assistente seria um sonho. Mas um assessor seria suficiente.
. Deputados podem indicar parentes para serem empregados como assistentes ou assessores partidários em seu gabinete?
KENT HÄRSTEDT: Não há uma lei específica que proíba essa prática, mas nunca vi isso acontecer aqui.
. Como deputado, o senhor tem direito a plano de saúde?
KENT HÄRSTEDT: Não temos nenhum plano de saúde especial. Apenas o sistema público de saúde, a que têm direito todos os cidadãos.
. Poderia descrever como é a sua rotina de vida como deputado?
KENT HÄRSTEDT: Vivo no sul da Suécia. Toda terça-feira, dirijo meu carro até o aeroporto, vôo para Estocolmo e pego um trem até o Parlamento. Trabalho na capital até a noite de quinta-feira ou a tarde de sexta, e o restante do tempo dedico ao trabalho na minha base eleitoral. Uma vez por semana, passo minhas camisas e penduro no armário, para ter roupa passada para toda a semana. Lavo minhas roupas no apartamento funcional, ou na lavanderia comunitária do Parlamento. Como não tenho faxineira, também limpo o apartamento. À noite, cozinho ou compro algo para comer em casa.
. No Parlamento, há restaurante a preços subsidiados para os deputados?
KENT HÄRSTEDT: Não, não. E a ajuda de custo diária que os deputados de outras regiões têm para viver na capital, no valor de 110 coroas suecas (cerca de 17 dólares), não cobre na verdade os gastos do dia.  Acabei de pagar 90 coroas pelo meu almoço, que é o preço normal por um prato simples. Para cobrir os custos do jantar e do café da manhã, é preciso tirar do meu salário como deputado.
. Como os demais deputados, o senhor trabalha de casa quando está em sua base eleitoral. Que tipo de assistência tem para isto?
KENT HÄRSTEDT: O Parlamento fornece a cada deputado um computador para o gabinete na capital, e também um laptop que pode ser usado quando traballhamos em nossas regiões de origem.
. Como cobre os custos com material de escritório quando está em sua cidade?
KENT HÄRSTEDT: Eu mesmo compro. Papel, caneta, pastas e outras pequenas coisas. Materiais mais complexos podem, é claro, ser processados no gabinete da capital, onde trabalho a maior parte da semana. Também temos, é claro, envelopes timbrados e serviços postais no próprio Parlamento. Mas se eu estiver na minha região e precisar postar algo, compro o selo. Não é caro.
. Aonde o senhor mantém reuniões?
KENT HÄRSTEDT: Normalmente, uso a sede local do partido ou a biblioteca pública. Nas bibliotecas públicas de três cidades, que são Estocolmo, Gotemburgo e Malmo, há uma sala especial reservada ao Parlamento, para que deputados possam manter reuniões. Nas demais cidades, usamos o café da biblioteca. Nenhum parlamentar tem gabinete próprio na sede local do partido, mas podemos usar as instalações e salas de reunião. Também é comum nos reunirmos ou encontrar eleitores em algum café local.
. Tem algum tipo de auxílio-alimentação, ou verba de representação para este tipo de gasto?
KENT HÄRSTEDT: Não, não.
. Deputados suecos não dispõem de verba para divulgação das atividades parlamentares. Como o senhor informa os seus eleitores sobre as suas atividades?
KENT HÄRSTEDT: Em todas as sociedades modernas, atualmente, as mídias sociais são um instrumento extremamente eficaz de comunicação. Eu uso o Facebook, por exemplo, para informar meus eleitores sobre minhas atividades desde o momento em que acordo até a hora de ir dormir. Eles sabem exatamente como gasto o meu tempo, o que estou fazendo, com quem estou me reunindo. Sabem, por exemplo, que estou neste momento dando esta entrevista a você. Está no meu Facebook.
. O senhor foi um dos últimos parlamentares a se mudar para um apartamento funcional, e dormiu num sofá-cama dentro do próprio gabinete de 1998 a 2002. Como foi esse período?
KENT HÄRSTEDT: Era evidentemente chato, porque eu acordava e a primeira coisa que via era a mesa de trabalho com o computador. Mas não era também nada demais. À noite, no corredor, desejávamos boa-noite uns aos outros e trancávamos a porta do gabinete para dormir. O gabinete tinha cerca de dez, doze metros quadrados. Havia um pequeno banheiro com chuveiro, onde eu também lavava roupas. Era normal, todos faziam isso. Hoje em dia, nenhum gabinete tem banheiros privativos.
. Como é o seu apartamento funcional hoje?
KENT HÄRSTEDT: O apartamento tem 35 metros quadrados, com um cômodo que funciona como sala e quarto para dormir. Tenho uma pequena cozinha, que fica também dentro da sala, e um banheiro. Há uma lavanderia comunitária no prédio, mas resolvi comprar minha própria máquina de lavar, que instalei na cozinha. Também costumo lavar roupa na lavanderia coletiva do Parlamento, pois é prático.
O que o senhor diria a um parlamentar que tem acesso a privilégios que não existem na Suécia?
KENT HÄRSTEDT: Pense naqueles que pagam as suas contas e despesas, e tente usar o dinheiro dos contribuintes de forma sensata e eficiente. É o que fazemos aqui.
 
 

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