Um Judiciário sem mordomias

 

Não almoço às custas do dinheiro do contribuinte” – Göran Lambertz, juiz da Suprema Corte da Suécia
”Luxo pago com o dinheiro do contribuinte é imoral e anti-ético” – Göran Lambertz, juiz da Suprema Corte da Suécia

 

Todos os dias, Göran Lambertz põe seu paletó e gravata, monta na bicicleta e pedala quinze minutos até à estação ferroviária. Amarra a bicicleta no imenso bicicletário público da estação, pega um trem e viaja 40 minutos para o trabalho – na instância maior do Poder Judiciário. Ele é um dos 16 magistrados do Supremo Tribunal da Suécia.
É uma manhã de abril quando encontro Lambertz em sua casa na bucólica Uppsala, cidade universitária a 70 quilômetros de Estocolmo. É uma casa surpreendentemente modesta. No pequeno jardim, estão duas bicicletas. A porta de entrada dá acesso a uma estreita sala de estar, decorada com  mobiliário simples que remete aos anos 70. Acima do sofá, uma pintura modernista de cores vibrantes quebra a sobriedade do ambiente. Ao lado, há uma grande prateleira de livros. Mais ao fundo, uma escada em madeira liga os dois andares da residência, cada um com 60 metros quadrados de área. Junto à escada, um corredor de poucos palmos conduz a uma minúscula cozinha, onde o juiz prepara o café.
Como todos os juízes e desembargadores da Suécia, Göran Lambertz não tem direito a carro oficial com motorista, nem secretária particular. Sem auxílio-moradia, todos pagam do próprio bolso por seus custos de moradia. Assim como os políticos do país, magistrados suecos também não têm o privilégio da imunidade ou do foro privilegiado – podem ser processados como qualquer cidadão. Seus salários variam entre cerca de 15 mil e 30,2 mil reais, mas não há benefícios extras: abonos, prêmios, verbas de representação, auxílios-transporte, auxílios-saúde e auxílios-alimentação não existem para juízes.
”Não almoço às custas do dnheiro do contribuinte”, diz Lambertz na cozinha, entre um gole de café com bulle (pão doce sueco).
Intrigado com o interesse em filmá-lo em seu trajeto para o trabalho na Suprema Corte, o juiz se prepara para a reportagem a ser gravada para a TV Bandeirantes. Dispõe a louça na lavadora de pratos, despede-se da mulher, e pega a bicicleta. O longo sobretudo de cor bege, que voa ao vento enquanto ele pedala, lhe cai como uma toga.
O caminho mais curto para a estação de trem atravessa um bosque nas cercanias da casa, situada em um bairro afastado do centro de Uppsala. Nem a chuva fina que começa a cair, e nem as ordens bradadas pelo cinegrafista, à distância, perturbam o juiz. ”Suba e desça de novo”, grita o cinegrafista para Lambertz, do alto de uma das colinas do bosque. A sequência da pedalagem do juiz pelo bosque, repetida quatro vezes, comprova a boa forma do magistrado. Sem ofegar, ele chega ao bicicletário público da estação, e segue com passos rápidos em direção à plataforma. ”Não posso perder o trem que sai agora”, avisa.
Ex-professor de Direito da Universidade de Uppsala e ex-Provedor de Justiça (Ombudsman) do Governo, Göran Lambertz chefiou ainda uma das divisões do Ministério da Justiça antes de se tornar juiz da Suprema Corte sueca, cargo vitalício que ocupa desde 2009. Controverso e eloquente, ele é um dos magistrados mais conhecidos do país.
No antigo palacete que sedia o Supremo Tribunal, próximo ao Palácio Real de Estocolmo, Lambertz nos conduz pela majestosa escadaria central de mármore. Imensas pinturas a óleo retratam, pelas paredes do edifício, nobres representantes da Corte de tempos passados. Tempos há muito idos, em que havia lacaios e privilégios. No pequeno escritorio do juiz Göran Lambertz, não há secretária na porta, nem assistentes particulares. Nem luxo.
”Luxo pago com o dinheiro do contribuinte é imoral e anti-ético”, diz o magistrado, na entrevista concedida em seu gabinete.
 
. Qual é o salário de um juiz na Suécia, incluindo eventuais benefícios extras?
GÖRAN LAMBERTZ: Juízes suecos recebem entre 5 mil euros (cerca de 6,6 mil dólares) e um máximo de 10 mil euros (13,3 mil dólares), que é o salário dos magistrados da Suprema Corte. Isto é o que se ganha, e é um bom salário. Pode-se viver bem com vencimentos deste porte, e é suficiente. Não há nenhum benefício extra.
. Juízes suecos não têm direito a benefícios como abonos, gratificações, auxílio-saúde, auxílio-transporte ou auxílio-alimentação?
GÖRAN LAMBERTZ: Não. Não almoço às custas do dinheiro do contribuinte. Todos os juízes pagam por suas próprias refeições. Nenhum de nós tem direito a carro com motorista ou planos de saúde especiais. Temos direito apenas aos serviços públicos de saúde, como qualquer cidadão.
. Vejo que o senhor não tem secretária particular. Também não conta com assistentes pessoais?
GÖRAN LAMBERTZ: Não temos secretárias particulares, mas contamos com uma equipe de assistentes que trabalha em conjunto para os 16 magistrados da Suprema Corte. São mais de 30 jovens profissionais da área de Direito, que auxiliam os juízes em todos os aspectos relacionados a um caso jurídico. Temos ainda uma equipe de cerca de quinze assistentes administrativos, que auxiliam a todos nós. Portanto, nenhum juiz tem secretária ou assistente particular para prestar assistência exclusiva a ele, e sim profissionais que lidam com aspectos específicos dos casos julgados pela Corte.
. O que pensa sobre sistemas de países como o Brasil, em que políticos e juízes têm privilégios como gratificações extras e jatos à sua disposição?
GÖRAN LAMBERTZ: Não consigo entender por que algum ser humano gostaria de ter tais privilégios. Só vivemos uma vez, e portanto penso que a vida deve ser vivida com bons padrões éticos. Não posso compreender um ser humano que tenta obter privilégios com o dinheiro público. Luxo pago com o dinheiro do contribuinte é imoral e anti-ético. Porque significa usar recursos públicos apenas para o próprio bem.
. Juízes suecos podem aceitar presentes como passeios de cruzeiros e viagens a resorts?
GÖRAN LAMBERTZ: Isto não acontece. Na verdade, ontem eu recebi um presente de um grupo de estudantes de Direito. Eu os recebi para uma visita à Suprema Corte, e ao se despedirem eles me deram um pacote de biscoitos e um pote de geléia. Este foi o único presente que recebi este ano. Mas ninguém ofereceria a um juiz coisas como dinheiro ou garrafas de bebida. Isto simplesmente não acontece, não. Na época do Natal, um banco, por exemplo, pode querer oferecer um presente a autoridades e órgãos públicos. Mas isso nunca aconte nos tribunais. Algumas vezes, talvez, pode acontecer que um banco ou um escritório de advocacia envie caixas de chocolate a algum tribunal como presente de Natal. Mas nunca um presente individual para um juiz em particular.
. Não há registro de casos de juízes suecos envolvidos em suborno ou venda de sentenças?
GÖRAN LAMBERTZ: Entre juízes, nunca ouvi falar de um caso de corrupção em toda a minha vida. Um sistema judiciário limpo é essencial. Porque se o sistema não é limpo, não existe justiça. E também porque os juízes devem ser um exemplo de honestidade para os políticos, e para a sociedade como um todo. Se os juízes não são ”limpos”, toda a sociedade é rompida pela desordem. Quando os juízes são corruptos, então todos os membros da sociedade podem ser. Um Judiciário que perde o respeito da população pode provocar uma explosão de desordem na sociedade.
. O que faz a Suécia para prevenir a corrupção no sistema judiciário?
GÖRAN LAMBERTZ: Na verdade, não muito. Isso porque existe na Suécia uma longa tradição de que as pessoas, em geral, não são corruptas. Se alguma pessoa oferecesse suborno a um juiz, ou se algum juiz pedisse algo, seria um grande escândalo no país. Mas isto simplesmente não acontece.
. E qual é a explicação para isso?
GÖRAN LAMBERTZ: Talvez a explicação seja que a sociedade sueca promove a honestidade em primeiro lugar, e expõe a desonestidade sempre que ela é descoberta. Somos uma sociedade aberta, e a mídia sempre irá denunciar atos corruptos. Atos desonestos não são mantidos no escuro. Esta é a essência do sistema. Todos sabem que, se algum ato impróprio for cometido, ele será denunciado. A polícia saberá, a mídia saberá. E os juízes jamais ousariam. Acho que nenhum juiz sueco jamais aceitaria um suborno. É algo tão proibido, que chega a ser impensável. É distante demais das nossas tradições. E se algum ato irregular for cometido, ele será reportado à polícia. Por isto, mesmo se algum juiz pensar em cometer um ato impróprio, ele não o fará. Porque teria medo de ser reportado à polícia.
. Qual é o grau de transparênca do Judiciário sueco? Posso checar as despesas de juízes e ter acesso a documentos oficiais dos tribunais?
GÖRAN LAMBERTZ: Sim. Qualquer cidadão pode vir aqui e checar as contas dos tribunais e os ganhos dos juízes. Autos judiciais e processos em andamento também são abertos ao público. As despesas dos juízes também podem ser verificadas, embora neste aspecto não exista muita coisa para checar. Juízes usam muito pouco dinheiro público, e não possuem benefícios como verba de representação. Os juízes suecos recebem seus salários, e isto é o que eles custam ao Estado. As exceções são viagens raras para alguma conferência, quando seus gastos com viagem e hotel são custeados. Com relação às contas bancárias privadas de um juiz, elas só podem ser verificadas se o juiz for suspeito de um crime. Mas tudo o mais é aberto, a não ser os casos em que é preciso proteger a identidade de uma pessoa, como vítimas de casos de estupro.
. Qualquer cidadão pode vir à Suprema Corte e checar a documentação oficial de um caso?
GÖRAN LAMBERTZ: Sim. Qualquer cidadão pode vir aqui e pedir para ver os documentos de um processo judicial. Um funcionário da Corte irá entregar os arquivos solicitados a ele, que poderá ler os documentos em uma sala equipada para atender estes pedidos. Cópias dos arquivos também podem ser solicitadas. Não há nada a esconder. A idéia básica é que tudo o que é decidido nos tribunais do país é aberto ao acesso público. O sistema judiciário sueco não é perfeito, mas não é impenetrável.
. Quem fiscaliza os juízes e os tribunais?
GÖRAN LAMBERTZ: Não há um órgão específico para isto, mas entidades como o Ombudsman do Parlamento e o Provedor de Justiça tem poderes para fiscalizar de que maneira os tribunais lidam com diferentes casos, quanto dinheiro eles gastam, e se atuam de forma eficiente. Eles não podem interferir nos julgamentos em si, mas podem controlar os gastos e a eficiência das Cortes. Os jornalistas também checam os nossos salários, e os rendimentos que recebemos de outras fontes. São rendimentos que recebemos, por exemplo, quando trabalhamos em comitês legislativos e disciplinares, e outros tipos de função que um juiz pode desempenhar. Muitas pessoas acham que os juízes ganham dinheiro demais, e isto gera críticas.
. O que é preciso para que países como o Brasil se tornam sociedades menos corruptas?      
GÖRAN LAMBERTZ: É necessário que os políticos assumam a sua responsabilidade diante da sociedade e o dever de dar bons exemplos, para que possam ter a confiança dos cidadãos e fazer a sua parte na criação de uma sociedade honesta. Se você é um juiz, certamente também tem o dever de ser honesto e promover a honestidade, além de estar preparado para ser fiscalizado todo o tempo. Portanto, penso que países como o Brasil e muitos outros necessitam de líderes que promovam constantemente a honestidade, e que dêem bons exemplos. Líderes que mostrem que não estão em busca de luxo para si, líderes que nunca aceitem suborno, líderes que deplorem oficialmente atos indignos. É preciso criar um movimento sério contra a corrupção, e deve ser um movimento de tolerância zero. Todos precisam começar do zero, e ter tolerância zero contra a desonestidade. E todos os que detêm posições oficiais no poder devem dar o bom exemplo.

 

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